“Fui ensinada a nunca questionar os hábitos de meus anfitriões, mas minha irmandade não criou nenhuma tola. Primeiro sou recebida à contragosto. Depois sou trancada como uma prisioneira em vez de uma irmã. E agora sou apresentada a um refeitório vazio onde nem mesmo minha guia me acompanhará na refeição.”
Anya falou de maneira calma sem olhar para Enair, mas sentiu a mulher enrijecer ao seu lado.
“Perdão, irmã. É só o que posso dizer. Não me queira mal. Como sua comida sem medo, foi feita por mim mesma, mas não queira saber mais. Certos mistérios devem permanecer sob seu manto. Providenciarei provisões para sua viagem e pedirei que sua roupa seja lavada e seus pertences limpos da poeira da viagem, mas peço, gentilmente, que se vá assim que recuperar as forças. Aviso também que seu quarto permanecera trancado, para sua própria segurança. Não há maldade em minhas ações, irmã, somente cuidado.”
A voz de Enair carregava uma tristeza profunda, mas era firme, determinada. Anya olhou a mulher, deu de ombros, sentou-se e começou a se servir. Muitas vezes a única maneira de se passar por certos obstáculos é confiar na intuição e a de Anya era bem mais que isso.
Dizem que muitos dos sobreviventes carregaram mutações para as gerações futuras, fruto da radiação e dos séculos vividos na escuridão, mas as mais afetadas foram as mulheres e consequentemente grande parte das guerreiras tinham alguma vantagem sobre seus inimigos no campo de batalha. Com o passar do tempo somente as guerreiras dominaram e cultivaram seus dons. É claro que em cada aldeia existia uma vidente ou maga e até mesmo algumas mulheres capazes de muito mais que se isolavam até sentirem que seus poderes eram necessários para a irmandade, pois cada mulher no mundo com um dom era leal à irmandade e à lei, as que se desviavam do caminho da lei não viviam muito tempo vendendo seus dons para os rebeldes.
Anya tinha muitos dons, mais do que era normal nos dias de hoje quando o sangue dos primeiros já se diluira tanto, e fazia bom uso deles. Tomou a sopa, que parecia um creme de batatas, e comeu o pão, ainda fresco do forno, e a omelete de tomates e cebolas com prazer. O vinho não era grande coisa, parecia estar velho demais, mas relaxou seus músculos e colocou um pouco de fogo em suas veias geladas pelas correntes de ar do castelo. A água era fresca e um pouco metálica, mas pura.
Foi fácil apreciar a refeição e enquanto comia não deu atenção à sua companheira silenciosa. Já que ficaria trancada no quarto encheria o estomago o mais que pudesse. Alem do mais não se sentia na obrigação de ser civilizada com uma irmã que tinha tantos segredos. Limpou o prato com os restos do pão e se recostou com um suspiro satisfeito.
“Bem, irmã, estou pronta para minha cela e somente peço a gentileza de me arrumar ungüentos e gazes para que eu possa cuidar de meus ferimentos.”
A mulher à seu lado ficou ainda mais pálida, o que para Anya foi uma surpresa já que era naturalmente quase transparente.
“Não sabia que estava ferida.”
“Ninguém se interessou em perguntar. Geralmente não faço alarde de meus ferimentos, mas a viagem foi longa e meus suprimentos são só uma lembrança.”
“Peço perdão novamente. Nosso isolamento parece ter nos feito esquecer as cortesias básicas da irmandade. Providenciarei o necessário para cuidar de seus ferimentos, mas sinto ter que agora lhe pedir que retorne para seu quarto e não pense nele como uma cela, como disse, somente penso em sua proteção.”
“Cara irmã, quando pedimos abrigo, mesmo na casa de nossas irmãs, nos curvamos à suas regras. Me curvo as suas e agradeço.”
Anya se curvou num agradecimento um tanto sarcástico que finalmente colocou um pouco de sangue na face de sua anfitriã.
17 de fev. de 2008
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