18 de mai. de 2010

Observações


A filha da senhora do 4º mora no 16º, mas é a senhora do 4º que passeia com o pequeno cão dela, isso quando não está passeando com o seu que é velho e mal humorado. A senhora do 4º é argentina, acho, e tem a disposição inversa ao seu cão. A moça do 10º usa saltos mesmo depois que chega em casa. Eu a ouço andar sem parar pela casa, tec tec tec, e me pergunto se ela não tem uma havaiana ou se gostaria de uma. Ela também gosta de arrastar moveis às 3 da manhã e eu a sigo de olhos no teto fazendo pequenas sugestões “A cama não fica bem ai, vire ao contrario e ponha a mesa do computador embaixo da janela.” O rapaz da cadeira de rodas mora no 8º, sempre é simpático mesmo quando o elevador lota e alguém quase cai em seu colo. A grávida do 13º tem dois cães e sempre comenta as musicas que escuto quando chegamos à garagem juntas. O senhor do 2º parece julgar que todos são possíveis seriais killers ou ao menos batedores de carteira. Minha vizinha, 9º, tem duas filhas, uma neta e o Chico, seu cão, que parece ter sempre algo a me dizer quando entro e saio de casa. Os jovens do 5º adoram futebol e graças a Deus torcem pelo time certo, pois do contrario suas comemorações escandalosas incomodariam. A jovem do 11º é antipática, talvez a saia muito justa e curta esprema seu cérebro. O garoto do 3º gosta de bola e de mais dois amigos. A mãe do 15º deixa o filho mais novo se vestir para ir a escola o que resulta em uniforme, óculos escuros e boné do Tigrão ( amigo do urso, não o meu irmão, mas o Puff) com orelhas e rabo. Mãe e filha do 17º pensam são melhores que os outros moradores somente por morarem no último andar, a senhora do 4º me assegura, pela careta que lhes faz pelas costas, que isso não é verdade. A cadela do 10º, algo entre um labrador negro e um vira-lata, ama me ver no elevador, alias ama qualquer um que fale com ela e coce ali bem atrás da orelha. O basset do 5º está velho e não quer papo, uma vida inteira olhando para a canela das pessoas deve tê-lo cansado. O porteiro da tarde gosta de papo, o da manhã gosta de acenos, o menino que tira o lixo gosta de pedaços de bolo na sexta-feira, o porteiro da noite olha com inveja para as caixas de pizza, o zelador instala lustres, chuveiros, varões de cortina e sempre cobra metade do preço que cobrariam por ai. Às vezes o elevador tem problemas. Às vezes os dois elevadores têm problemas. Às vezes falta luz, mas a subida pelos nove andares é sempre divertida. Os passos acima da minha cabeça me dizem que é hora de começar a relaxar e preparar o corpo para outro dia. Boa noite.
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17 de mai. de 2010

Blue


Era um homem cortês. Muito mais do que isso, era um homem sempre pronto a estender a mão, a perdoar, a servir. Era daqueles para quem um ato de bondade é mais natural que respirar, mas a cada dia achava mais difícil seguir seus instintos. Quando temos a natureza compassiva não esperamos recompensa, fazemos o bem porque nos faz bem, nos acostumamos a que nos virem as costas e nos encarem com estranheza e até mesmo nos acostumamos a que atos que deveriam ser voluntários sejam exigidos como se a repetição de um gesto delicado deva ser replicado indefinidamente mesmo quando recebido com apatia. Ele já não sentia prazer em fazer o bem, ainda o fazia, mas como o coração pesado esperando o retorno raivoso, como o cão que lambe a mão sabendo que o pé lhe acertará o traseiro no mesmo instante. Olhava em volta e via tantas pessoas precisando de uma mão amiga, mas quando se aproximava o olhavam com aquela expressão rancorosa e estúpida dos que se ressentem dos que tem a alma mais bela e pura. Ele então virava as costas. A primeira vez foi difícil, apesar das palavras raivosas ainda queria ajudar, mas da segunda vez foi mais fácil, bem mais fácil. Era somente imaginar o acido das palavras amargas com que seria pago e podia virar por sua vez as costas sem remorsos. A cada dia ficava mais fácil e também mais difícil, pois para seu coração fazia falta acalmar a dor alheia, mas com o tempo percebeu que os anos mal recompensados o haviam transformado em um homem triste e sem esperança na humanidade. Um dia, andando pela rua tentando ignorar os alertas nas faces emburradas, viu um cão angustiado e faminto. Era fácil ler a historia do animal, a coleira dizia que um dia pertencera a alguém, o pelo tosado que este alguém um dia se importara, mas os olhos desesperados diziam que alem de já não se importarem mais ainda o haviam despachado sem cerimônias para a terra dos animais sem dono, estas avenidas onde alguns encontram alguém que os abrigue novamente, outros viram companheiros sem abrigo de humanos sem casa, muitos perdem a vida entre pneus e asfalto e outros vagam tentando entender onde erraram, se amaram demais ou se demonstraram felicidade demais ao encarar aqueles a quem se dedicaram sem esperar muito, mas esperando por um pouco de carinho. Ele sentou perto do cão, que já devia ter recebido sua parcela de insultos em sua busca por seus humanos, e esperou que o animal viesse a ele. Dividiu um sanduíche com o cão e vendo que este se acalmara o atou com seu cinto e, esquecendo que ainda havia meio dia de trabalho, o levou para casa. Encheu a banheira de água quente e mergulhou o cão com cuidado. O ensaboou varias vezes e o enxaguou até que a água que escorria fosse límpida. Depois de secá-lo o alimentou, misturando arroz e carne moída que pareceram agradar o bicho imensamente. Arrumou um canto da área de serviço colocando jornais velhos e contou ao novo companheiro que ali seria seu banheiro. Resolveu tornar as coisas mais agradáveis e permanentes e atando o amigo novamente ao cinto o levou a um pet shop. Lá comprou ração, tigelas para água e comida, duas roupas de plush, o inverno afinal já havia chegado, e uma cama grande, fofa e bem colorida. Voltando ao seu apartamento arrumou tudo e quando se deu por satisfeito tomou um banho e ligou a TV para ver se o mundo ainda estava girando. Pegou o cão e o acomodou no sofá ao seu lado e o chamou de Blue. E a cada cinco minutos o chamava Blue até o cão entender que era esse seu novo nome. Deste dia em diante nunca mais se sentiu só ou triste por não poder fazer o bem. Sempre que seu coração pedia que fosse gentil ele o era. Para Blue. Sempre que desejava reconhecimento ele o tinha. De Blue. Sempre que queria amor ele o recebia. Blue. Sempre que queria sorrir havia por que sorrir. Blue. Sempre que pensava que quase desistira de ser bom ele agradecia. A Blue
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16 de mai. de 2010

Com o Pé na Cova


As pessoas sempre se surpreendem quando digo a minha idade. Rio muito quando me tiram 10 anos ou mais e mais ainda quando dizem o quanto minha vivacidade os surpreende para alguém tão perto dos 50. Talvez isso se deva ao fato de que minha memória é fantástica para as coisas que importam. Lembro muito bem de minha infância e mais ainda dos anos confusos da adolescência, mas me lembro ainda melhor da minha mocidade e da alegria de estar viva, ser bela e saudável e ter um cérebro de certa maneira privilegiado, já que em uma era onde o declínio mental começou eu fui capaz de pensar por mim mesma e ganhar meu espaço no mundo sem a ajuda de ninguém. Lembro principalmente dos sentimentos e como era lindo amar e sofrer, e ter esperança e desesperar, sempre pulando de sentimento para sentimento em espaços de tempo que agora me parecem infinitesimais. Talvez minha memória é que tenha me dado a capacidade de me conectar com as pessoas que precisam de um ombro amigo, mas não complacente, de uma pessoa com alguma sabedoria, mas sem medo de dizer verdades, de uma mãe/irmã/mulher que não sinta o peso do tempo. Em jovem me consideravam adulta demais, agora, no que considero o pico de minha vida, me consideram jovem para meus anos. De certa maneira faz sentido, mesmo que somente para mim. Vivi tantas experiências maravilhosas que hoje me farto delas, fecho os olhos e revivo meus momentos mais belos como se tivessem ocorrido ontem. Relembro meus reveses e decepções também, pois a balança precisa estar nivelada e saber viver é entender o que te faz feliz e infeliz, o que lhe traz o sucesso e o fracasso. A felicidade é um mito e estar completamente satisfeito com sua vida é entender que “felizes para sempre” somente existe em contos de fada e que um coração que se contenta com o que tem é jovem para sempre. Este blog se chama Com o Pé na Cova e existe, em muitos provedores, há muito tempo. Ele ganhou este nome quando me disseram, pela primeira vez, que eu estava ultrapassada, velha. Foi feito como uma piada e acabou se transformando em mais uma maneira de me manter jovem e “afiada”. Transformou-se também, para minha surpresa, em um lugar onde maravilhosos amigos foram feitos e onde pude, com meu cinismo e crueza habituais, ajudar aqueles que ainda não tem a memória de tantos sentimentos vividos.
Pelas minhas contas são sete anos de Cova e apesar de me distanciar às vezes, com certeza nunca a abandonarei, é aqui que digo o que penso e tento, com o pouco dom que Deus me deu, transmitir àqueles que ainda são inocentes que mesmo quando tudo parece perdido é preciso dar um passo atrás e olhar o quadro com interesse clinico para então voltar, curtir a dor como ao couro e respirar novamente, sabendo que a dor virá muitas vezes, assim como o amor, os momentos de felicidade, a paixão, a alegria. E vivendo cada momento plenamente chegarão aos 47 surpreendendo a todos com uma juventude que vem de dentro, que vem por finalmente aceitar que a perfeição é ser o que se é sem desejar mais ou menos, fazendo de si mesma o melhor e entendendo que se não é magra o suficiente a culpa é do chocolate que come todas as noites e não do universo, se o cabelo não encaracola é porque é naturalmente liso, se o amor não vem fácil é porque está cada vez mais exigente, se não sai tanto é porque não aceita os convites feitos e se o futebol não lhe traz alegrias é porque escolheu torcer pelo Corinthians. Como mano Urso diz.... Se eu tivesse escolha trocava de time. O resto eu deixo como está.
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8 de mai. de 2010


Ter fé é algo com que me acostumei. Não penso muito nisso, não faço promessas, nunca as fiz, não rezo pedindo por milagres, mas confesso que rezo para Deus me dar calma para agüentar tanta idiotice no meu dia a dia. Acendo velas para meu anjo da guarda regularmente e durante crises eu aguardo que Deus me dê uma mãozinha, mas nunca o culpo se está ocupado demais para perceber meu desespero. Tenho fé e não sei de onde vem. Sei que está lá porque quando meu coração pesa , e eu não tenho com quem me confessar, conto minhas inseguranças e medos baixinho debaixo do edredom e sinto um alivio por acreditar que alguém me ouve e se compadece. Não tenho religião, não preciso desta bengala, sou feliz acreditando e tendo fé sem que ninguém me diga que é uma obrigação. Talvez seja minha rebeldia nata falando, mas não admito que homem, ou mulher, na terra se diga apto para entender a fé melhor do que eu e meu coração. Sou assim uma paria nessa sociedade onde se é preciso pertencer, pertenço somente a mim mesma e ao que acredito e acredito em tantas coisas... Hoje, recostada na cama, notebook na bandeja, tenho uma daquelas conversas com Deus, peço a ele que me dê paciência para conviver com aqueles que amo, mas me irritam, mais paciência ainda para continuar num trabalho em que meus superiores tem sempre dois pesos e duas medidas para tudo e, para não parecer que não sou grata, agradeço pela existência dos animais, do chocolate, da pipoca, da TV a cabo, dos amigos que nunca esquecem, do meu irmão que faz tudo valer a pena, dos meus dogs que me tornam sempre uma pessoa melhor, dos livros, da musica, perfumes importados, laranja lima, caixas de madeira coloridas, bichos de pelúcia, flores multicoloridas, canecas gigantes, manicures com senso de humor, banana com sorvete, computadores super potentes, mentes brilhantes, amores possíveis e fins de semana. Ah, e Chris Cornell. Amem.
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2 de mai. de 2010

Segredo


Todos temos segredos. Todos nós escondemos fatos e manias que temos medo influenciarem o modo como outros nos vêem. Todos temos segredos, ridículos na maioria das vezes, como cutucar o nariz e claramente justificados, como assassinato. Ela não cutucava o nariz. Enquanto olhava a sua volta pensava como era simples aparentar normalidade. Ninguém que a visse sentada empoleirada ao balcão tomando um cálice de vinho poderia imaginar que seu acervo secreto de facas picava mais do que cenouras e tomates. Seu sorriso era gentil e sedutor e suas mãos delicadas e macias. Orgulhava-se delas, mas não de sua aparência feminina e sim sua firmeza e precisão. Alguns a chamariam de serial killer, mas nunca procurou uma vitima, estas sempre se apresentavam a ela, culpadas, cheias de pecado, desejo, maldade e estupidez. Algumas vezes se questionava se levava longe demais a aversão pelos parasitas que povoavam o mundo, mas era como se toda resistência fosse inútil, pois eles cruzavam seu caminho a cada esquina. Não fazia distinção entre homens, mulheres, heteros ou gays, o que lhes garantia o posto em seu altar de sacrifício era sua ignorância e num mundo onde a ignorância cresce como erva daninha entre o asfalto não havia como escapar do que o destino colocava em seu caminho. Seu olhar vagou pelo bar e com um suspiro agradecido se preparou para aproveitar uma noite de paz e solidão. Não gostava de matar, não fora criada acreditando estar acima da justiça, do bem e do mal, mas era como uma compulsão e cada vez que podia voltar para casa sem que esta fosse despertada era como um desejo atendido, um milagre realizado. Terminou seu vinho, deixou uma boa gorjeta para o barman e saiu para a rua respirando profundamente o ar noturno que quase a fez esquecer que morava em uma metrópole das mais poluídas do mundo. A noite cheirava a chuva fresca e brisa marinha e se sentiu renovada. Esta noite não mataria, mas sabia que era somente um daqueles dias felizes onde o dedo do destino a acariciava em vez de punir. Hoje seu altar ficaria vazio e ela satisfeita.
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