17 de mai. de 2010

Blue


Era um homem cortês. Muito mais do que isso, era um homem sempre pronto a estender a mão, a perdoar, a servir. Era daqueles para quem um ato de bondade é mais natural que respirar, mas a cada dia achava mais difícil seguir seus instintos. Quando temos a natureza compassiva não esperamos recompensa, fazemos o bem porque nos faz bem, nos acostumamos a que nos virem as costas e nos encarem com estranheza e até mesmo nos acostumamos a que atos que deveriam ser voluntários sejam exigidos como se a repetição de um gesto delicado deva ser replicado indefinidamente mesmo quando recebido com apatia. Ele já não sentia prazer em fazer o bem, ainda o fazia, mas como o coração pesado esperando o retorno raivoso, como o cão que lambe a mão sabendo que o pé lhe acertará o traseiro no mesmo instante. Olhava em volta e via tantas pessoas precisando de uma mão amiga, mas quando se aproximava o olhavam com aquela expressão rancorosa e estúpida dos que se ressentem dos que tem a alma mais bela e pura. Ele então virava as costas. A primeira vez foi difícil, apesar das palavras raivosas ainda queria ajudar, mas da segunda vez foi mais fácil, bem mais fácil. Era somente imaginar o acido das palavras amargas com que seria pago e podia virar por sua vez as costas sem remorsos. A cada dia ficava mais fácil e também mais difícil, pois para seu coração fazia falta acalmar a dor alheia, mas com o tempo percebeu que os anos mal recompensados o haviam transformado em um homem triste e sem esperança na humanidade. Um dia, andando pela rua tentando ignorar os alertas nas faces emburradas, viu um cão angustiado e faminto. Era fácil ler a historia do animal, a coleira dizia que um dia pertencera a alguém, o pelo tosado que este alguém um dia se importara, mas os olhos desesperados diziam que alem de já não se importarem mais ainda o haviam despachado sem cerimônias para a terra dos animais sem dono, estas avenidas onde alguns encontram alguém que os abrigue novamente, outros viram companheiros sem abrigo de humanos sem casa, muitos perdem a vida entre pneus e asfalto e outros vagam tentando entender onde erraram, se amaram demais ou se demonstraram felicidade demais ao encarar aqueles a quem se dedicaram sem esperar muito, mas esperando por um pouco de carinho. Ele sentou perto do cão, que já devia ter recebido sua parcela de insultos em sua busca por seus humanos, e esperou que o animal viesse a ele. Dividiu um sanduíche com o cão e vendo que este se acalmara o atou com seu cinto e, esquecendo que ainda havia meio dia de trabalho, o levou para casa. Encheu a banheira de água quente e mergulhou o cão com cuidado. O ensaboou varias vezes e o enxaguou até que a água que escorria fosse límpida. Depois de secá-lo o alimentou, misturando arroz e carne moída que pareceram agradar o bicho imensamente. Arrumou um canto da área de serviço colocando jornais velhos e contou ao novo companheiro que ali seria seu banheiro. Resolveu tornar as coisas mais agradáveis e permanentes e atando o amigo novamente ao cinto o levou a um pet shop. Lá comprou ração, tigelas para água e comida, duas roupas de plush, o inverno afinal já havia chegado, e uma cama grande, fofa e bem colorida. Voltando ao seu apartamento arrumou tudo e quando se deu por satisfeito tomou um banho e ligou a TV para ver se o mundo ainda estava girando. Pegou o cão e o acomodou no sofá ao seu lado e o chamou de Blue. E a cada cinco minutos o chamava Blue até o cão entender que era esse seu novo nome. Deste dia em diante nunca mais se sentiu só ou triste por não poder fazer o bem. Sempre que seu coração pedia que fosse gentil ele o era. Para Blue. Sempre que desejava reconhecimento ele o tinha. De Blue. Sempre que queria amor ele o recebia. Blue. Sempre que queria sorrir havia por que sorrir. Blue. Sempre que pensava que quase desistira de ser bom ele agradecia. A Blue
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4 comentários:

Anônimo disse...

O que dizer deste e tantos outros contos. Deliciosos...

E mais técnicamente, ou nem tanto assim, se alguem estiver a fim de fazer CURTAS é aqui a "loja de doces"

Saudações

Heidi Costa disse...

Um conto muito bonito e muito triste também. ja estou na fase de "desistir" e ando procurando pelo meu proprio "blue".
Mas ao mesmo tempo, fico meio assustada com a idia onde só os bichinhos merecem carinho (ou são capazes de lidar com ele).

CLICK disse...

Minha querida pink amiga Deka,
Cuidado com Blue...Sit !!!Sit!!!!
Mais vale um blue friend do que um friend blue !!! Lambidas no seu nariz !

RICARDO MANN disse...

Muito bacana esse conto. É um exemplo a se seguido.