1 de jul. de 2007

Post Mortem

Para qualquer pessoa a visão seria chocante, talvez até nauseante. Provavelmente lagrimas instantâneas nublassem a vista e espasmos estomacais levariam mãos a cobrirem bocas, corpos se dobrariam em dois enquanto joelhos atingiriam o chão levando dor a um cérebro já sobrecarregado. Mas não para ele. O rosto tingido em tons de púrpura e sangue já não mais parecia pertencer a um ser humano. Os ossos quebrados deformavam a face e lembravam mais um ser saído de um filme de horror. O corpo não estava em melhor estado. “Em frangalhos” poderia bem descreve-lo, mas não diria tudo. Não bastaria para contar da humilhação que fora infligida, do sadismo extremo com que fora tratado, do desprezo pela vida que cada chaga, cada hematoma, cada pequeno rio de sangue gritava em altos brados. Mas seus olhos estavam secos. Enxergava cada pequeno detalhe sem que sua face perdesse a cor rosada ou que seus olhos se espremessem como fazemos quando algo nos choca. A mesa de aço, que parecia tão gelada e imprópria para o repouso de qualquer corpo humano, já estava preparada. Todos seus instrumentos na bandeja brilhavam tão desnecessariamente esterilizados e o gravador aguardava suas palavras que seriam o epitáfio de uma vida perdida tão estupidamente. Seu sanduíche de mortadela, a metade dele que ainda restava, lhe chamou a atenção e o atacou com determinação enxaguado por uma lata de guaraná já meio quente. Seus olhos nunca deixaram o corpo. Sua mente nunca deixou de se perguntar como um ser humano poderia tratar a outro assim. Mas esse era o seu trabalho, como fazer tabelas ou dirigir empresas o eram para outros, e ele se orgulhava de ser um dos melhores. Um arroto quebra o silencio da sala e ele enrubesce. Primeiro sinal de qualquer emoção nesta figura tão fria quanto sua sala. Olha para o corpo e com voz rouca e velha pede desculpas pela grosseria. Só então percebemos que seu coração não está morto, não está intocado pela tragédia que jaz diante dele. Está somente bem abrigado, protegido por anos de tragédias, centenas de corpos maltratados, milhares de vidas destruídas. Seu coração ainda bate como o nosso, mas seu trabalho é mais importante que seus sentimentos. A mão firme que acaricia o rosto pétreo o denuncia novamente e logo nada mais resta a não ser o legista. Ele é a ultima voz que se levantará pelas vitimas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Uau! Descreveu o outr frio com intenso aquecimento!! Excelente

dade amorim disse...

Pra um novato deve ser uma barra!

BOm fim de semana, beijins, viu, menina?