14 de jul. de 2008

Uma Questão de Negócios


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O sorriso era amistoso, apesar dos dentes que brilhavam por entre os lábios serem tão afiados e a mão que a convidava a sentar ser tão branca que a luz vinda da lareira parecia atravessá-la.
Em sua cabeça ela ouviu as linhas da historia infantil “Para que dentes tão grandes, vovózinha?”, “Para te comer, minha netinha!”. Reprimiu a custo uma risada nervosa que sabia que teria se espalhado em ecos infinitos pela parede do castelo.
- Suas referencias são maravilhosas. Governanta na casa do Duque D e também na casa do Lorde L e assistente pessoal do Primeiro Ministro J. O que a fez sair destes empregos? - A voz do Conde era melodiosa e um tanto quanto melancólica.
- Bem, não haviam desafios e com o tempo eu senti necessidade de mudar, mas sai em bons termos de todos. Posso dizer que tenho a honra de constar na lista de pessoas de confiança de meus antigos empregadores. – Ela não o olhava nos olhos. Os dele pareciam ser feitos de fogo liquido em um continuo redemoinho e mais do que a intimidavam, a faziam temer ser hipnotizada e levada alem da sanidade.
- Ah.... lhe faltava aventura, presumo. Algo mais do que o mundano, algo alem da rotina.
- Não....Sim... Quer dizer, todos esperamos por um pouco de emoção em nossas vidas, não é? Algo que faça nosso sangue correr.... - Se arrependeu das palavras logo que as disse. Mencionar sangue para um Conde pálido, de dentes afiados, em um castelo decrépito era um risco grande demais.
- Sim. O sangue, tudo sempre se resume a ele. O queremos frio em nossas veias para tomar decisões. O queremos quente para saborear melhor as paixões. O queremos correndo, como fogo liquido, para nos excitar diante do perigo. – E os dentes brancos e estranhamente sedutores morderam os lábios vermelhos.
- Bem, o senhor me desculpe, mas acho que foi um erro essa entrevista. O castelo é muito distante e...
- Não, por favor, não se negue. Não vê que sofro? - e ele realmente parecia cansado e abatido. - Minha casa ancestral é uma ruína. Meus servos não têm uma mão firme que os comande e não faço uma refeição decente há séculos.
- O senhor come? - ela perguntou curiosa.
- A curiosidade maior que o medo....- e ele sorriu animado. - sabe quem sou e ainda assim.... mas, respondendo a sua pergunta. Sim. Eu como. Sopas, vitaminas e afins. É preciso imaginação para preparar minhas refeições, mas minha maior preocupação é com o castelo. Não vejo porque tenho que viver em meio à teias de aranhas e pó secular. Nem entendo porque me visto à rigor se minha casa parece prestes a desabar. Preciso de ajuda. – e seu rosto se torceu angustiado.
- Mas...mas... o risco... sei que disse que gostaria de mais aventuras, mas trabalhar aqui... com o senhor...
- Minha cara, os tempos modernos são incríveis. Posso não conseguir uma governanta, mas tenho TV à cabo e conexão rápida para a Internet. Faço compras online como qualquer um e os bancos de sangue estão sempre prontos a me atender à qualquer hora. Posso até mesmo escolher o tipo sangüíneo que prefiro. O- é uma iguaria, mas ultimamente anda em falta no mercado. Portanto o único risco que correria aqui seria tropeçar nas teias de aranha e cair escada abaixo. Já há muito tempo que não ataco pescoços. O ultimo bom dentista que conheci faleceu em 1930 e o que veio depois quase me pôs a perder um canino. Imagina o que é um canino para mim?
- Mas o castelo é imenso! Eu sozinha não daria conta.
- Tenho muitos servos. Inúteis todos eles, mas a meu comando te obedecerão cegamente. Reinsfield! - ele chamou sem levantar a voz e quase de imediato um homem maltrapilho entrou meio curvado. - Reinsfield, de hoje em diante você e os outros obedecerão essa senhorita cegamente. Aquele que ousar encostar a mão nela ou lhe faltar com o respeito sofrerá dois séculos de torturas. E, pelo amor de Deus, tome um banho e vista-se decentemente. Pode ir.
- Sim, mestre. - E tão silenciosamente como havia surgido ele se foi.
- Vê? Rios de dinheiro, a vida eterna e se contentam em andar pelas sombras vestindo farrapos. Preciso de você para que trazer o mundo moderno para minha realidade.
- Conde, não nos apressemos. Nem mesmo falamos sobre remuneração e nem nos benefícios. Apesar de ansiar por uma vida mais aventureira não serei leviana no que diz respeito à minha carreira. - antes de tudo ela era uma mulher muito pratica.
- Seu salário será de 10.000 libras por mês, folgas aos domingos e duas férias, de quatro semanas cada, por ano onde poderá desfrutar de minhas propriedades na Reviera, Escócia, Grécia, Estados Unidos, Itália, França, Irlanda e se não estou enganado existe também uma fazenda no Brasil. Claro que citei somente os lugares que imagino possam atraí-la, mas pode escolher entre qualquer uma das minhas propriedades.
Ela quase não respirava. Não era somente a riqueza nunca sonhada, mas também o desafio e a aventura que lhe faltavam. Era como uma negociação qualquer, mas com tantas possibilidades....
- Não me faça sofrer mais, desde que vi seu currículo que sonho com uma casa brilhante onde possa receber sem vergonha. Se a proposta não lhe é atraente me diga, minha fortuna está em suas mãos. - Ele tinha lagrimas sangüíneas nos olhos e seus caninos agudos mordiam os lábios de ansiedade.
- A proposta é ótima, senhor Conde. Só o que me atrevo a dizer é que, apesar de gostar de aventuras, dormir em um castelo com seus servos e suas noivas.... o senhor as tem ainda, não? As vi em muitos filmes e elas não parecem do tipo de obedecer à regras, mesmo impostas pelo senhor.
- Ah, sim, minhas noivas. Criaturas tolas. Poderiam ter feito dessa casa o castelo mais rico do mundo, mas só dormem nas masmorras em meio à sujeira e na companhia dos ratos. Você está certa. Tenho uma casa, nem 500 metros daqui, seria a casa do administrador se eu o tivesse. É sua. Amanha mesmo mando plantarem alho em toda sua volta e pedirei ao padre da vila que benza seu terreno. Vê meu desespero? Só quero ser normal...- Uma lagrima vermelha se desprendeu dos olhos e correu a face triste.
Ela se levantou e lhe estendeu a mão diminuta. O negocio estava selado. No dia seguinte ela se mudou para a casa cercada por plantações de alho e onde o terreno tinha sido aspergido com água benta. Logo o castelo ganhou vida. Reformas foram feitas, moveis novos comprados, cortinas e roupas de cama, mesa e banho encomendadas. E ela, a pequena governanta, era a rainha, somente ela geria toda fortuna acumulada por séculos. As pessoas vieram, governantes, diplomatas, nobres, todos para conhecer o castelo que saíra das brumas para o esplendor. Ela, feliz como nunca, passava horas inventando pratos líquidos para o deleite de seu patrão. Ele, remoçado, lhe adivinhava os desejos e a cobria de presentes.
No fim, foi tudo somente uma questão de negócios.

7 de jul. de 2008

O dia que assassinaram Hamlet

Não. Não o assassinato esperado. Não o final sangrento e cataclísmico de sempre de Shakespeare. Não. Se assim fosse eu não teria ficado com gosto de figo estragado com patê de ameba na boca.
Se fosse por minha vontade cortaria todo o primeiro ato para os 5 minutos em que Wagner Moura não ficou pulando pelo palco como um ornitorrinco bêbado. Nestes minutos ele esteve bem, dramático e cômico sem apelação, mas foram somente 5 minutos das quase duas horas do primeiro ato.
Shakespeare pode ser atualizado, simplificado, adaptado, mas se você quiser se manter fiel ao texto não tente transformar suas belas palavras em gritos exagerados e loucura desvairada. Em certos momentos o discurso insano de Hamlet é até incompreensível pois Wagner Moura grita tanto que seu sotaque baiano ganha e só o que se pode imaginar é que definitivamente este Hamlet não bate bem da bola.
Rainha Gertrudes é carioca, com certeza, Ss e Rs tão carregados que quando se diz no reino da Dinamarca dá para rir como se fosse piada. Rei Claudius pensa estar em novela cômica da globo e em vez de insidioso parece patético, em vez de maquiavélico parece ridículo, em vez de rei parece chefe do jogo do bicho. Seus gritos, como os de Hamlet, em vez de mostrarem ira ou medo somente evidenciam descontrole e mais, evidenciam o fato de que o ator perde suas falas a todo o momento, cuspindo entre os gritos até achar a palavra certa.
Horacio se dá bem, contido, amigo e confidente, sobressai em meio à confusão não vulgarizando um personagem amado por todos.
Ofélia é bela, doce e sempre no tom certo, sei que já vi esta menina em algum lugar e espero que ela tenha mais sorte numa outra peça, pois sua presença é reconfortante dentre o caos generalizado.
Polônios pensa estar no Show dos trapalhões. O personagem que deveria ser bajulador, cheio de si e de sua importância se torna, nesta leitura, somente um falastrão ridículo que quer por força arrancar risadas mesmo quando o drama corre solto.
Hamlet é um drama, com momentos de extrema comicidade, mas este que vi é somente um pastelão inspirado em um clássico.
Saí ao fim do primeiro ato sem um segundo de hesitação. Para mim Hamlet foi assassinado bem antes do tempo.
Quem teve o bom senso de ler a peça ou de assistir o filme de Kenneth Branagh sabe que Hamlet é dor e rancor, mesclado com o riso do disfarce forçado e finalizado com lagrimas sinceras pela queda de um reino onde a honra ficou esquecida num passado longínquo.
The rest is silence.

Domingo, 06/07/2008, Teatro FAAP, 18h00 (deselegantemente começou às 18h20.

6 de jul. de 2008

O Morto

- Morto?
- Morto!
- Mas morto… Como?
- E eu que sei! Se nem sei quem é o morto!
- Mas ele tá no seu sofá, Ana!
O dia acabava de amanhecer e o sol mal chegava no hall minúsculo do apartamento onde as duas mulheres falavam aos sussurros. A sala se abria aos seus olhos incrédulos e o morto estava instalado, confortavelmente, em um dos sofás baixos e modernos. Era obvio, pelo estado catastrófico do aposento, que a festa da noite anterior tivera mais convidados do que o pequeno aposento comportava. Copos e restos de salgadinhos por todos os cantos, cheiro de cerveja derramada e suor de muitos corpos em uma noite de verão.
- Só o sofá é meu, Denise, não o morto. Alias nem sei quem é ele. Você lembra com quem ele veio?
- Lembrar? Não lembro nem com quem EU vim, depois de tanta Vodka e ainda mais com você me tirando da cama às 5 da manhã de Domingo. Eu tinha acabado de deitar.
- E quem eu ia chamar? A policia? Alem do mais foi você que me convenceu a me dar essa festa pra inaugurar o apartamento. E vê só como terminou? Essa sujeira, copo pra todo lado e um morto no meu sofá.
- Tá bom, eu divido a culpa sobre a festa, mas eu sai daqui antes do morto morrer.
- Como você sabe? Nem eu vi o morto morto. Eu....
- Você o que? Aha, Ana!!! Você foi pro quanto com alguém antes da festa acabar, não é? Eu sabia!!! Foi o Mario?
- Não, e isso não interessa. O que interessa é: O que eu faço com esse morto?
- Bom, precisamos nos livrar dele. Vamos deixar ele num banco de praça e pronto.
- E como a gente faz isso?
- Carregamos como se estivesse bêbado, já vi isso num filme. Nessa hora não tem ninguém na rua e é só largar o coitado em alguma praça.
- Tá bom. Vamos nessa.
Carregar o morto era mais difícil do que parecia, mas as duas conseguiram entrar com ele no elevador. Quando as portas se abriram no subsolo deram de cara com o zelador, de olhar sonolento e aparência desleixada.
- Morto?
- Como assim, morto? – Ana perguntou tentando parecer ingênua.- Ele tá só bêbado.
- Tá não, moça. Esse ai tá morto. Vai levar pra onde.
- Não sei.... – Ela entregou resignada
- Larga em alguma esquina. Logo acham ele.
- Mas, seu Zé, mal estamos conseguindo segurar ele agora. Enfiar ele no carro e tirar vai ser mais difícil ainda.
- Eu ajudo, deixa só avisar a patroa que vou sair.
Ele se foi e voltou depois de 5 minutos seguido de uma mulher baixa e morena que devia ser a patroa.
- Morto, né? Foi na festa que a moça deu? Bebida ou droga?
- Não sei, nem sei quem é ele. – respondeu Ana sem graça.
- Ahh, esses morto são os pior.
O marido se despediu da esposa e enfiou o morto no carro de Ana sem compaixão. Acharam uma praça deserta facilmente e descarregaram o morto o sentando em um banco. Ficaram os três olhando para o homem sem perceber que duas velhas senhoras se aproximavam com seus poodles.
- Ih!!! Morto? – perguntou a mais velha das velhas
- Claro que tá morto, que pergunta besta, Madalena. – respondeu a mais nova das velhas.
Os três, Ana, Denise e o zelador deram um pulo e encararam as duas velhas que se aproximaram do morto sem hesitação.
- Morto arrumadinho... Tava numa festa, é? Foi drogas ou sexo? – Disse a mais velha.
- Tá na cara que foi sexo, é sempre sexo nesses dias. Com qual das duas foi? – Perguntou a mais nova olhando de Ana para Denise.
- Nenhuma, nem sabemos quem é o morto. Ele amanheceu morto, só isso. – Denise começou a perder a calma. – Olha, precisamos ir....
As duas senhoras deram de ombros e continuaram a investigar o defunto enquanto os três se viravam para voltar ao carro. Uma viatura da policia estava parada, bem atrás do carro de Ana e dois policiais saltavam olhando para eles. Aproximaram-se conversando, com copos de café nas mãos e andar cansado.
- Morto é? – Perguntou o mais baixo.
- Mortinho. – Respondeu a mais velha das velhas.
- Mas falaram que não foi sexo. – Disse a mais nova delas.
- Deve ter sido drogas, então. – Disse o mais alto dos policiais.
- Não tem cara de drogado, só de safado. Ainda acho que foi sexo. – Disse a mais nova das velhas.
- Já disse que não foi sexo. – Gritou Ana irritada.
- A senhora conhece o morto? – Perguntou o mais alto dos policiais.
- Nunca vi o morto vivo, se o senhor quer saber.
- E vocês, conheciam o morto? – Perguntou o mais baixo olhando para Denise e o zelador que acenaram um rápido não.
- Então é melhor que a gente chame o rabecão pra levar o pacote. Alguém quer acompanhar o defunto? – Ofereceu o mais baixo.
Os três recusaram e as duas senhoras também, com certa tristeza, já que tinham que passear com seus cães. Os policiais, alto e baixo, deram de ombros e foram para o carro chamar o rabecão. Ana, Denise e o zelador foram andando bem devagar até o carro, esperando pelo momento em que os mandariam parar, mas ninguém o fez. Entraram no carro e partiram dando a volta na praça devagar como se não tivessem pressa. Os policiais acenaram adeus e as duas velhas, agora sentadas flanqueando o morto, também.
Na garagem do edifício a esposa do zelador os esperava e desejou um bom dia “pras moças” enquanto arrastava o marido para trocar a lâmpada da cozinha e reclamava que a maquina de levar tinha pifado de novo.
Ana e Denise voltaram para o apartamento e ficaram paradas no hall olhando uma para a outra sem entender o que havia se passado nas ultimas horas e como haviam saído de tudo sem um arranhão. Talvez seja assim com mortos anônimos, fica obvio para todos que ninguém é culpado, sendo assim só nos restam perguntas prosaicas e de interesse geral. “Foi bebida, drogas ou sexo?”

3 de jul. de 2008

A Viúva

O caixão parecia pequeno demais para o homem que ele fora. Poderoso e temido agora ocupava um espaço restrito, mesmo que acolchoado de cetim. Os homens usavam ternos que custavam o salário de um ano de muitas pessoas e as mulheres desfilavam pretinhos não tão básicos assim. Todos vinham prestar suas homenagens diante do morto e, de passagem, lhe jogavam uma ou duas palavras de consolo. Ninguém lhe dava muita atenção, não chegava a ser ignorada, mas era como se fosse a quinta coadjuvante em um filme de terceira categoria. Todos sabiam que seu casamento fora uma fachada, ela tinha boa linhagem e dinheiro de família e ele havia prezado demais as aparências para largá-la por uma de suas varias amantes. Ela nunca tivera força suficiente para deixá-lo, fora criada para obedecer e assim o fizera. Aceitara tudo como parte do pacote assim como aceitara o dinheiro fácil e a posição social inclusos. Olhou o rosto endurecido pela morte à sua frente e não sentiu nada a não ser um alivio divertido. Ouvia os comentários pelo enorme salão, a ultima fofoca de como ele a deixara sem nada, de como fundira sua fortuna à dele, de como passara para o nome de amantes e partidários todos seus bens quando pressentira a morte. O jovem advogado que cuidara de tudo estava postado a um canto, a olhando vez por outra com um sorriso no rosto. A hora chegou e o caixão baixou ao solo lavado por lagrimas de mil amantes e de partidários políticos que perdiam seu benfeitor. Ela não chorou. Na verdade sorriu olhando para o céu azul de inverno e escandalizou a todos partindo antes do fim da cerimônia, balançando a bolsa pequena como em um piquenique e assobiando uma antiga canção. A casa, que sempre lhe parecera gélida, agora a recebeu cálida e confortável. Da biblioteca, refugio de seu pobre e morto marido, vinha o som de uma musica suave e o crepitar do fogo na lareira. Ela abriu a porta e lá estava ele. O jovem advogado que fora eleito como seu carrasco. Ele a tomou nos braços e ensaiou uma valsa enquanto riam do mundo. Na lareira os documentos que a sentenciavam à miséria queimavam e sobre a mesa o antigo testamento, dos tempos de recém casados, lhe dava o mundo. Valera a pena esperar. Foram dois longos anos para que o veneno lhe torcesse as cordas duras do coração de aço, mas ele sucumbira. Ela não cometeria o mesmo erro duas vezes. O jovem advogado a levaria em uma longa viagem por lugares exóticos e com certeza a pediria em casamento. Mas talvez ele não voltasse...