- Morto?
- Morto!
- Mas morto… Como?
- E eu que sei! Se nem sei quem é o morto!
- Mas ele tá no seu sofá, Ana!
O dia acabava de amanhecer e o sol mal chegava no hall minúsculo do apartamento onde as duas mulheres falavam aos sussurros. A sala se abria aos seus olhos incrédulos e o morto estava instalado, confortavelmente, em um dos sofás baixos e modernos. Era obvio, pelo estado catastrófico do aposento, que a festa da noite anterior tivera mais convidados do que o pequeno aposento comportava. Copos e restos de salgadinhos por todos os cantos, cheiro de cerveja derramada e suor de muitos corpos em uma noite de verão.
- Só o sofá é meu, Denise, não o morto. Alias nem sei quem é ele. Você lembra com quem ele veio?
- Lembrar? Não lembro nem com quem EU vim, depois de tanta Vodka e ainda mais com você me tirando da cama às 5 da manhã de Domingo. Eu tinha acabado de deitar.
- E quem eu ia chamar? A policia? Alem do mais foi você que me convenceu a me dar essa festa pra inaugurar o apartamento. E vê só como terminou? Essa sujeira, copo pra todo lado e um morto no meu sofá.
- Tá bom, eu divido a culpa sobre a festa, mas eu sai daqui antes do morto morrer.
- Como você sabe? Nem eu vi o morto morto. Eu....
- Você o que? Aha, Ana!!! Você foi pro quanto com alguém antes da festa acabar, não é? Eu sabia!!! Foi o Mario?
- Não, e isso não interessa. O que interessa é: O que eu faço com esse morto?
- Bom, precisamos nos livrar dele. Vamos deixar ele num banco de praça e pronto.
- E como a gente faz isso?
- Carregamos como se estivesse bêbado, já vi isso num filme. Nessa hora não tem ninguém na rua e é só largar o coitado em alguma praça.
- Tá bom. Vamos nessa.
Carregar o morto era mais difícil do que parecia, mas as duas conseguiram entrar com ele no elevador. Quando as portas se abriram no subsolo deram de cara com o zelador, de olhar sonolento e aparência desleixada.
- Morto?
- Como assim, morto? – Ana perguntou tentando parecer ingênua.- Ele tá só bêbado.
- Tá não, moça. Esse ai tá morto. Vai levar pra onde.
- Não sei.... – Ela entregou resignada
- Larga em alguma esquina. Logo acham ele.
- Mas, seu Zé, mal estamos conseguindo segurar ele agora. Enfiar ele no carro e tirar vai ser mais difícil ainda.
- Eu ajudo, deixa só avisar a patroa que vou sair.
Ele se foi e voltou depois de 5 minutos seguido de uma mulher baixa e morena que devia ser a patroa.
- Morto, né? Foi na festa que a moça deu? Bebida ou droga?
- Não sei, nem sei quem é ele. – respondeu Ana sem graça.
- Ahh, esses morto são os pior.
O marido se despediu da esposa e enfiou o morto no carro de Ana sem compaixão. Acharam uma praça deserta facilmente e descarregaram o morto o sentando em um banco. Ficaram os três olhando para o homem sem perceber que duas velhas senhoras se aproximavam com seus poodles.
- Ih!!! Morto? – perguntou a mais velha das velhas
- Claro que tá morto, que pergunta besta, Madalena. – respondeu a mais nova das velhas.
Os três, Ana, Denise e o zelador deram um pulo e encararam as duas velhas que se aproximaram do morto sem hesitação.
- Morto arrumadinho... Tava numa festa, é? Foi drogas ou sexo? – Disse a mais velha.
- Tá na cara que foi sexo, é sempre sexo nesses dias. Com qual das duas foi? – Perguntou a mais nova olhando de Ana para Denise.
- Nenhuma, nem sabemos quem é o morto. Ele amanheceu morto, só isso. – Denise começou a perder a calma. – Olha, precisamos ir....
As duas senhoras deram de ombros e continuaram a investigar o defunto enquanto os três se viravam para voltar ao carro. Uma viatura da policia estava parada, bem atrás do carro de Ana e dois policiais saltavam olhando para eles. Aproximaram-se conversando, com copos de café nas mãos e andar cansado.
- Morto é? – Perguntou o mais baixo.
- Mortinho. – Respondeu a mais velha das velhas.
- Mas falaram que não foi sexo. – Disse a mais nova delas.
- Deve ter sido drogas, então. – Disse o mais alto dos policiais.
- Não tem cara de drogado, só de safado. Ainda acho que foi sexo. – Disse a mais nova das velhas.
- Já disse que não foi sexo. – Gritou Ana irritada.
- A senhora conhece o morto? – Perguntou o mais alto dos policiais.
- Nunca vi o morto vivo, se o senhor quer saber.
- E vocês, conheciam o morto? – Perguntou o mais baixo olhando para Denise e o zelador que acenaram um rápido não.
- Então é melhor que a gente chame o rabecão pra levar o pacote. Alguém quer acompanhar o defunto? – Ofereceu o mais baixo.
Os três recusaram e as duas senhoras também, com certa tristeza, já que tinham que passear com seus cães. Os policiais, alto e baixo, deram de ombros e foram para o carro chamar o rabecão. Ana, Denise e o zelador foram andando bem devagar até o carro, esperando pelo momento em que os mandariam parar, mas ninguém o fez. Entraram no carro e partiram dando a volta na praça devagar como se não tivessem pressa. Os policiais acenaram adeus e as duas velhas, agora sentadas flanqueando o morto, também.
Na garagem do edifício a esposa do zelador os esperava e desejou um bom dia “pras moças” enquanto arrastava o marido para trocar a lâmpada da cozinha e reclamava que a maquina de levar tinha pifado de novo.
Ana e Denise voltaram para o apartamento e ficaram paradas no hall olhando uma para a outra sem entender o que havia se passado nas ultimas horas e como haviam saído de tudo sem um arranhão. Talvez seja assim com mortos anônimos, fica obvio para todos que ninguém é culpado, sendo assim só nos restam perguntas prosaicas e de interesse geral. “Foi bebida, drogas ou sexo?”
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