23 de fev. de 2008

Templo

Eu acredito que nossos corpos devem ser tratados como templos. Devemos respeitar este amontoado de carne e ossos como respeitaríamos os templos de nossa religião. É nisso que acredito. Se fosse religiosa faria oferendas em altares, acenderia velas e diria uma ou duas preces para garantir. Não sou. A não ser que se conte o templo que é meu corpo. Infelizmente a entidade que parece mandar nesse meu santuário parece gostar particularmente de batatinha Ruffles, chocolate e macarrão com alho e azeite e quem sou eu para ir contra o chefão. Cada vez mais vejo pessoas ignorando sua voz interior, parece mais importante usar um numero 36 do que tomar um milkshake para aplacar a ira do chefe do templo. Para cada um existe um limite. Alguns nunca serão um 36 e serão confortáveis 46 atraindo olhares e sorrisos, sendo belos e perfeitamente ajustados mesmo sabendo que poderiam ser um 42 ou mesmo 40. Alguns sonharão com um 40, mas nunca conseguirão passar de um 38, mesmo exagerando em suas oferendas. Cada templo tem um tamanho e forma e quando começamos a demolir paredes e encurtar altares para abrigar somente uma platéia mais seleta, então tudo pode desmoronar. O mesmo pode ocorrer ao se tentar acrescentar mais andares e altares auxiliares para àquelas oferendas que já transbordam do altar principal. Existe um tamanho confortável para cada templo, mas é primeiro preciso acreditar que o que temos é suficiente. Existem pessoas que nunca se conformarão com o que tem, com o que são e tentarão perverter os desejos de seus templos para que se ajustem aos seus sonhos. Mas lembrem-se, só se vive uma vez, só temos uma passagem por esta estrada e, talvez, tarde demais, você descubra que o prazer em pequenas oferendas poderia ter feito de sua vida uma viagem bem mais prazerosa. Se seu templo é um 42 ou um mero 36 ou um 48 cheio de curvas não importa, o que importa é que tenha absoluta consciência de que a parte mais importante de você não tem numero. O que vai te fazer alguém melhor, mais feliz e realizado está dentro de uma caixinha bem guardada no alto de sua cabeça.

22 de fev. de 2008

Voltando...

Tenho um novo respeito por piratas, daqueles de tapa olho e papagaio no ombro, mais pelo tapa-olho que pelo papagaio. Três dias limitada à metade de minha visão e me senti completamente perdida. Sem visão periférica à direita, sem perceber perfeitamente a profundidade, me senti muitas vezes melhor com os dois olhos fechados do que somente com meu um são aberto. Fico me perguntando como faziam os piratas com suas pernas de pau para complementar. Livre do tapa-olho me sinto inteira novamente, apesar do olho direito estar um pouco nublado e seja estranho ver a pupila de um olho completamente dilatada enquanto a outra está normal.
Tomamos tudo por certo na vida, andar sobre duas pernas, ter dois braços para nos amparar, dois olhos para nos guiar, ouvidos para nos prevenir e voz para gritar por socorro, ou pedir um chocolate, quando é preciso. Nem preciso dizer que, completos como somos, nunca imaginamos como é não o ser. Às vezes é bom que lembremos, mesmo que por breves períodos, que tudo poderia ser pior, e mesmo assim, manejável. Somos adaptáveis, mesmo que não saibamos disso.

20 de fev. de 2008

Nota

Pequeno acidente...
Córnea lesionada...
Alguns dias de repouso....
Nada sério... muito susto...
Volto logo...
Voltem sempre...
Kisses

18 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 16)

Anya foi levada até seu quarto e deixada à sós, mas não por muito tempo. Logo Enair voltou com ungüentos e faixas para seus ferimentos.
“É melhor se despir, sozinha não vai conseguir limpar os ferimentos. Se me permitir, é claro.”
Anya nem respondeu, pois sabia que não conseguiria enfaixar seu braço como deveria. Tirou as roupas e deixou que Enair visse o rasgo largo em seu ombro direito, feito por uma lamina enferrujada nas mãos de um rebelde repulsivo que a atacara pelas costas, e a perfuração em sua coxa direita, feita por um punhal cravado e virado em sua carne como um espeto.
Enair soltou um gemido de pesar. Como Anya chegara tão longe e suportara a dor até agora era uma coisa que não podia entender.
“Preciso limpar profundamente e vai doer. Quer um pedaço de couro para morder?”
“Não é preciso. Já tive ferimentos piores.”
Enair respirou fundo e limpou os ferimentos cuidadosamente com álcool de ervas. Não foi fácil e muito menos indolor. O ferimento da coxa começava a purgar e foi preciso raspar o tecido morto. O do ombro não estava tão mal apesar de ser grande, mas não era tão profundo e não atingira nenhum músculo. Enair então cobriu os ferimentos com um ungüento meio fedido, mas que aliviou milagrosamente a dor que Anya sentia, e os cobriu com bandagens enrolando faixas de algodão para proteger.
“Obrigada.” Anya disse simplesmente e vestiu um camisão de linho fino que usava para dormir e também porque era uma de suas ultimas peças limpa.
“Vou deixa-la agora. Vou deixar estes frascos. Este, verde, vai te prevenir de infecções, é muito amargo, mas eficiente. O do frasco vermelho é um sedativo leve. Uma colher de cada te dará uma noite mais tranqüila. Se acordar no meio da noite tome mais uma colher do verde e outra pela manhã.”
“Obrigada, Enair.”
Ambas inclinaram a cabeça em um boa noite e Anya estava novamente sozinha. Ela tomou o xarope amargo para a infecção, mas guardou o sedativo na sacola de viagem. De jeito nenhum toldaria seus sentidos neste castelo.
Deitou na cama e se concentrou em cada nervo de seu corpo, cada músculo, cada membro, cada órgão. Concentrou-se até que seu corpo pareceu ficar livre de qualquer sensação que não fosse a de não ter peso e forma. Anya existia, mas seu corpo repousava recobrando forças enquanto sua mente vagava. No começo somente ouvia. O vento forçava as persianas, fazendo com que tremessem como castanholas nas mãos de uma dançarina, assobiando pelas frescas, gemendo lamentos. Anya excluiu estes ruídos, não interessavam. Com um pouco mais de esforço começou a escutar o que realmente queria.
Um castelo é como uma câmara de ecos, passos viajam de uma ala a outra e vozes são carregadas pelos corredores. Anya pode contar ouvir muitas vozes, baixar e roucas, como que cansadas, sempre aos sussurros, soando mais como animais do que pessoas. Os passos também não eram os que Anya esperava encontrar em um castelo da irmandade. Eram arrastados e pesados, muito diferente dos passos lépidos e apressados que eram comum nas guerreiras, mesmo as mais velhas.
Este não era um lugar comum. Era como se um manto de desesperança o cobrisse. Não havia espaço para risos ou conversas animadas. Este era um lugar amaldiçoado.

17 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 15)

“Fui ensinada a nunca questionar os hábitos de meus anfitriões, mas minha irmandade não criou nenhuma tola. Primeiro sou recebida à contragosto. Depois sou trancada como uma prisioneira em vez de uma irmã. E agora sou apresentada a um refeitório vazio onde nem mesmo minha guia me acompanhará na refeição.”
Anya falou de maneira calma sem olhar para Enair, mas sentiu a mulher enrijecer ao seu lado.
“Perdão, irmã. É só o que posso dizer. Não me queira mal. Como sua comida sem medo, foi feita por mim mesma, mas não queira saber mais. Certos mistérios devem permanecer sob seu manto. Providenciarei provisões para sua viagem e pedirei que sua roupa seja lavada e seus pertences limpos da poeira da viagem, mas peço, gentilmente, que se vá assim que recuperar as forças. Aviso também que seu quarto permanecera trancado, para sua própria segurança. Não há maldade em minhas ações, irmã, somente cuidado.”
A voz de Enair carregava uma tristeza profunda, mas era firme, determinada. Anya olhou a mulher, deu de ombros, sentou-se e começou a se servir. Muitas vezes a única maneira de se passar por certos obstáculos é confiar na intuição e a de Anya era bem mais que isso.
Dizem que muitos dos sobreviventes carregaram mutações para as gerações futuras, fruto da radiação e dos séculos vividos na escuridão, mas as mais afetadas foram as mulheres e consequentemente grande parte das guerreiras tinham alguma vantagem sobre seus inimigos no campo de batalha. Com o passar do tempo somente as guerreiras dominaram e cultivaram seus dons. É claro que em cada aldeia existia uma vidente ou maga e até mesmo algumas mulheres capazes de muito mais que se isolavam até sentirem que seus poderes eram necessários para a irmandade, pois cada mulher no mundo com um dom era leal à irmandade e à lei, as que se desviavam do caminho da lei não viviam muito tempo vendendo seus dons para os rebeldes.
Anya tinha muitos dons, mais do que era normal nos dias de hoje quando o sangue dos primeiros já se diluira tanto, e fazia bom uso deles. Tomou a sopa, que parecia um creme de batatas, e comeu o pão, ainda fresco do forno, e a omelete de tomates e cebolas com prazer. O vinho não era grande coisa, parecia estar velho demais, mas relaxou seus músculos e colocou um pouco de fogo em suas veias geladas pelas correntes de ar do castelo. A água era fresca e um pouco metálica, mas pura.
Foi fácil apreciar a refeição e enquanto comia não deu atenção à sua companheira silenciosa. Já que ficaria trancada no quarto encheria o estomago o mais que pudesse. Alem do mais não se sentia na obrigação de ser civilizada com uma irmã que tinha tantos segredos. Limpou o prato com os restos do pão e se recostou com um suspiro satisfeito.
“Bem, irmã, estou pronta para minha cela e somente peço a gentileza de me arrumar ungüentos e gazes para que eu possa cuidar de meus ferimentos.”
A mulher à seu lado ficou ainda mais pálida, o que para Anya foi uma surpresa já que era naturalmente quase transparente.
“Não sabia que estava ferida.”
“Ninguém se interessou em perguntar. Geralmente não faço alarde de meus ferimentos, mas a viagem foi longa e meus suprimentos são só uma lembrança.”
“Peço perdão novamente. Nosso isolamento parece ter nos feito esquecer as cortesias básicas da irmandade. Providenciarei o necessário para cuidar de seus ferimentos, mas sinto ter que agora lhe pedir que retorne para seu quarto e não pense nele como uma cela, como disse, somente penso em sua proteção.”
“Cara irmã, quando pedimos abrigo, mesmo na casa de nossas irmãs, nos curvamos à suas regras. Me curvo as suas e agradeço.”
Anya se curvou num agradecimento um tanto sarcástico que finalmente colocou um pouco de sangue na face de sua anfitriã.

15 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 14)

Anya não era de lutar contra moinhos, estava por demais cansada para atacar uma porta sólida como aquela. Fez um giro completo no seu aposento, que não melhorou em nada com a inspeção, e descobriu um banheiro rústico onde somente corria água fria. Ela já tivera dias piores, já tivera que se esfregar com neve, numa imitação de banho, e já se lavará em rios tão barrentos que sua pele mudara de tom por dias inteiros. Despiu a roupa de viagem, dobrando tudo cuidadosamente e guardando na sacola de roupas sujas, e enfrentou a banheira com coragem. Deixou a água correr até perder a ferrugem que a tornava opaca e então enfiou a cabeça debaixo da água gelada. Esfregou os cabelos varias vezes, fazendo caretas e praguejando, pois foi preciso ensaboá-los quatro vezes antes que estivessem limpos. Quando terminou sua cabeça latejava com uma promessa de enxaqueca, mas começava a se sentir humana novamente. Encheu a banheira até o meio e mergulhou o corpo rapidamente. Esfregou o corpo até sentir cada milímetro de sua pele arder, se enxaguou e repetiu tudo novamente. Enrolou-se na toalha e foi para o quarto querendo dormir por pelo menos doze horas. A cama não era nada convidativa e parecia não ser usada a séculos.
Uma guerreira nunca confiava no acaso. Todas carregavam em seus alforjes tudo que precisavam para sobreviver. Anya não era exceção. A toalha que se enxugara, o shampoo, sabonete, bucha que usará vieram de sua bagagem assim como o saco de dormir que agora desdobrava e estendia em frente à porta, bloqueando a passagem de quem quer que tentasse entrar.
A pouca luz que passava pelas frestas da janela morreu e somente o ressonar de Anya era ouvido no quarto que parecia pertencer à outro tempo. Aos poucos, bem ao longe, podia-se ouvir o castelo acordando. Vozes distantes, passos lentos cruzando corredores sombrios, o tilintar de louça soando triste dentro da noite.
Anya abriu os olhos, absolutamente alerta, assim que a chave girou na fechadura. Em dois segundos estava em pé, adaga em punho, esperando por quem viria tirá-la de seu cárcere, mas ninguém entrou. Em vez disso ouviu-se três corteses toc-toc-toc na porta. Anya arrastou o saco de dormir para longe, sem pressa, e voltou para receber o visitante, uma mão na maçaneta, outra atrás das costas segurando a adaga.
Esperando pacientemente do outro lado da porta estava a mulher mais pálida que Anya já vira. Era alta, bem mais alta que Anya que media bem 1,75 mt., tinha longos cabelos negros e olhos de um cinza metálico.
“Boa noite, irmã. Sinto que sua recepção não tenha sido calorosa. Neste fim de mundo parece que esquecemos que pertencemos à uma irmandade, mas deixe-me tentar nos redimir. Meu nome é Enair e sou a mestra deste castelo.”
A mulher estendeu os braços cruzando-os, fechou as mãos em punhos levando os braços ao peito enquanto inclinava a cabeça em um cumprimento antigo somente usado em ocasiões solenes. Era um gesto ao mesmo tempo belo e assustador.
Anya respondeu da mesma maneira se sentindo cada vez mais estranha neste lugar escondido do mundo.
“Bem vinda e que sua estada seja curta e saudável.”
“Obrigada, irmã, mas não sabia que a hospitalidade de nossa irmandade agora exigia estadas curtas. Sou Anya, do sul do continente, do castelo dos Alpes, para lhe servir.”
“Deixe-mos acusações e explicações para depois que matar sua fome, minha cara, mas saiba que somente lhe desejo o melhor. Venha, cuidemos de seu estomago, o resto pode esperar. Por enquanto.”
Anya seguiu sua estranha guia pensando nas mais estranhas palavras, mas a fome a dominava completamente e concordou que seria melhor encarar o que viesse de estomago cheio.
Andaram por corredores vazios passando por salas vazias. Anya podia ouvir movimento pelo castelo, mas em nenhum lugar pode ver uma sombra sequer de outras guerreiras. Finalmente chegaram ao refeitório, mas nele não havia ninguém. Não havia uma viva alma nas inúmeras e imensas mesas que deveriam estar cheias de riso e vida. Não havia festa, nem fofoca, nem travessas fumegantes. Um único prato estava posto na cabeceira de uma das mesas. Um único prato em um retângulo recém limpo de mesa. Todo o resto estava coberto de poeira.

13 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 13)

“Você quer mesmo que eu te conte a historia?”
“Claro que quero. Todas historias me interessam e a sua mais do que todas. Acho que você é a soma de suas dores, que te atingiram cedo demais, e de suas aventuras. Então me conte um pouco das aventuras.”
“Tá bom.”
Anya se sentou à sombra de um caramanchão coberto de hera e esperou Marissa terminar sua tarefa e se sentar ao seu lado.
“Lá vamos nós. Era uma vez...”
Era uma vez um castelo que parecia sempre coberto de bruma. Para se chegar a ele era preciso subir por uma estrada sinuosa e íngreme que acompanhava a montanha. Não estava no sopé da montanha, nem em seu topo, ele estava aninhado em uma plataforma natural e protegida à ¼ do topo. A estrada terminava em suas portas e para seguir caminho se deveria ser um exímio alpinista.
Anya alcançou a estrada no final do outono. Sabia que provavelmente ficaria presa nesse fim de mundo por pelo menos dois meses se não se apressasse. Não havia muito o que fazer por ali, de qualquer maneira, mas sua missão a levara para a região e este era o único castelo da irmandade por estes lados onde poderia descansar com segurança, curar seus ferimentos e encher seus alforjes para a longa viagem de volta. Nunca soubera de ninguém que estivera nele, mas constava dos registros como ativo e os registros nunca mentiam.
Olhando para o alto não era de se estranhar que recebesse poucos visitantes. O que deveria ser uma vista encantadora somente provocava um arrepio correndo pelas costas. A neve no topo da montanha parecia ameaçadora em vez de bela, a bruma que cercava o castelo mais misteriosa do que encantadora. Era como olhar para uma paisagem maravilhosa e saber que atrás de uma pedra num campo de flores havia algo de unhas afiadas e carne putrefata à sua espera.
Não havia vila próxima, como na maior parte dos castelos pertencentes à irmandade e a porta estava hermeticamente fechada, também contrariando os costumes. Só se fechavam portões e içavam-se pontes quando havia perigo a vista.
Anya puxou uma corda que tocava um sino mais pesado do que ela. O badalar em vez de ser musical pareceu pesaroso e mórbido. Um tempo longo demais se passou antes que o portão rangesse e uma fresta se abrisse.
“Sim?”
“Boa tarde, irmã. Procuro abrigo e provisões.”
“Sim?”
“Desculpe, mas este não é um castelo da irmandade?”
“Sim... Desculpe, irmã. Não estamos acostumados a visitantes. Entre por favor e me siga. Vou acompanha-la a seus aposentos. Poderá descansar e se refrescar antes do jantar.”
Anya agradeceu um tanto quanto constrangida. Os castelos eram sempre lugares festivos onde qualquer guerreira podia contar com uma boa acolhida, mas neste parecia que ela era apenas um estorvo. Para começar toda recém chegada era levada diretamente ao refeitório para que pudesse encher o estomago e matar a sede com o que estivesse à mão, afinal, muitas vezes, chegavam de viagens longas onde mal se alimentavam e mal podiam esperar para matar a fome. O ultimo pensamento era para um banho quente e perfumado e por fim uma cama macia e de cobertas quentes de onde somente saiam quando o corpo se recusava a permanecer deitado. Nem é preciso dizer que também era comum chegarem feridas e a primeira pergunta feita, mal adentravam um castelo era “está ferida, irmã?” o que a levaria direto à curandeira. Mas nenhuma dessas pequenas delicadezas foi desperdiçada com Anya. Ela deveria se contentar com banho e cama e deveria consolar seu estomago esfaimado com os restos de passas e nozes de seu alforje.
Os corredores eram demasiadamente escuros e todas janelas estavam fechadas no meio da tarde. O ar era pesado e cheirava a mofo e algo mais, algo enjoativo e nauseante.
Seu quarto era um aposento enorme e nada acolhedor. Lareira apagada, cama de lençóis cansados e até empoeirados. Nada parecia com seu castelo onde cada quarto estava apinhado de camas frescas com travesseiros recheados de ervas calmantes. Ela tentou, mesmo assim, agradecer, mas sua guia a deixara entregue à si mesma fechando a porta à sua saída sem uma palavra de adeus. Anya tentou segui-la para saber dos costumes do castelo, quando poderia comer e onde, mas foi impossível. A porta se encontrava trancada.

12 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 12)

Marissa atualizava Anya das ultimas novas do castelo enquanto se serviam e comiam sentadas na extremidade de uma das grandes mesas. Onde existirem três ou mais pessoas existira fofoca e para falar a verdade era uma espécie de alivio para a tensão sempre presente na vida destas mulheres poder saber de quem finalmente tinha perdido a virgindade, quem aposentara a espada em troca de um casamento ou simplesmente pelo cansaço. Era bom saber das desavenças infantis de mulheres feitas que eram respeitadas nos quatro cantos do mundo, mas que brigavam por uma saia pega sem permissão ou um pedaço de chocolate.
Anya há muito tempo não ria tanto, Marissa tinha uma maneira inocente e ao mesmo tempo sarcástica de contar historias, era como ouvir uma criança contar uma piada indecente.
“E você nem imagina quem largou a espada por um homem. Cássia!”
“Como assim por um homem? Ela sempre gostou de garotas. Alias costumava se gabar de nunca ter visto um pênis em toda sua vida.”
“Pois é,” e Marissa riu com vontade “depois que viu nunca mais se cansou. Ah, Anya, a vida de uma guerreira pode ser difícil, mas não faltam risadas neste castelo.”
“Não são todos como o nosso. Alguns são tão sombrios que é quase impossível se dormir sem pesadelos.” E Anya estremeceu com a lembrança de um determinado castelo assombrado que parecia estar sempre envolto pela bruma.
“Jura? Você deve ter muitas historias. Será que terá tempo de me contar algumas?”
“Muitas, minha Marissa curiosa, mas agora é hora do trabalho. E eu talvez deva ajudar a lavar os pratos.”
“Não, eca! Nada de pratos. Venha comigo para o jardim plantar algumas ervas que chegaram hoje cedo e me conte a historia do castelo na bruma.”
O jardim do castelo era uma mistura de canteiro de flores, de ervas e pomar. Anya não caminhava por ali há muitos anos e o perfume quase a atordoou. Pêssegos pesavam nos galhos nodosos, flores brotavam por todos os cantos fazendo do lugar um grande frasco de perfume e as ervas pareciam curar o olhar antes de acharem os males do corpo. Era um lugar quase mágico e Marissa parecia mais feliz neste jardim do que em qualquer outro lugar. De joelhos na terra abrindo uma cama macia para as novas ervas, sorria e cantarolava melodias mais antigas que elas mesmas.
Anya sentiu vontade de tirar do peito um pouco dos fantasmas que a rondavam. E foi assim que começaram as historias, e foi assim que Marissa se tornou aquela que completaria o diário em que Anya nunca mais escreveria.
Algumas pessoas nasceram para fazer historia, outras para contá-la.

11 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 11)

Marissa esperou em silencio o que sua heroína diria. A vermelhidão de seu rosto se espalhava lentamente para seu pescoço e colo como se a vergonha a cobrisse.
“Você está muito decepcionada, Marissa? Isso muda muito a sua vida? Porque nunca ninguém esperou que fosse uma guerreira a não ser você mesma. Somente você não viu que seu coração é grande demais e sensível demais para essa vida. E não tenho vergonha de você, tenho orgulho pois nunca deixou que as historias dos horrores que vimos te desanimassem e nunca deixou que a endurecessem. Eu me orgulho de você e fui uma boba por nunca te dizer.”
Marissa a abraçou e chorou de alivio. Anya se deixou ser abraçada, não sabia bem lidar com estas demonstrações de afeto hoje em dia, e levou a jovem para um canto sossegado do refeitório.
“Desculpa Anya, sou mesmo uma molenga, mas quando soube que você estava aqui só podia pensar que ficaria decepcionada comigo.”
“Você sempre se importou demais com o que eu penso. Não devia. Eu é que devia me importar mais com o que pensa. De nós duas você é a que tem mais bom senso, eu só tenho músculos, cicatrizes e muita raiva acumulada.”
“Oh, não! Não fale assim. Me parte o coração ver que ainda está tão doída por dentro.”
Anya a olhou espantada. Todos a julgavam dura, sábia e infalível, mas Marissa, como sempre, parecia saber mais sobre ela do que qualquer outra pessoa, até mesmo mais do que sua madrinha.
“Vamos deixar pra lá meu estado, por mais catastrófico que seja. O que pretende fazer agora? Vai desistir do castelo?”
“Não, não! De jeito nenhum. Posso não ter o coração para ser uma guerreira, mas isso não quer dizer que eu não possa ser útil. Tenho estudado muito o uso das ervas e o básico de medicina, já me inscrevi para ser uma curandeira. Pra dizer a verdade acho que me empenhei muito mais nisso do que no manejo da espada. Acho que minha alma sabia melhor minha vocação do que eu, não acha?”
“Com certeza! Oh, Marissa, isso é maravilhoso, não imagina como é bom saber que um dia vou ter você ao meu lado ao fim de uma batalha e não uma guerreira me remendando de qualquer jeito. Temos pouquíssimas curandeiras e precisamos desesperadamente delas. Quando você estará pronta?”
“Bem, eu já estou, mas pedi para ficar um tempo ainda no castelo.”
Marissa ruborizou novamente e Anya percebeu que ela era a causa para a jovem desejar permanecer no castelo. E agradeceu por isso. Pela primeira vez sentia a necessidade de ter alguém que se importasse com ela, que a olhasse com olhos menos cautelosos e mais amorosos. Ser uma guerreira era carregar um escudo maior do que aquele usado para protegê-la, era ter uma enorme redoma que a separava das pessoas comuns. Era ser olhada com temor e reverencia. Era ser a esperança para muitos e a ameaça para poucos. De uma guerreira nunca era esperada nenhuma emoção que não fosse a ânsia pela batalha, nenhuma palavra que não o grito de vitória, nenhum gesto que não o adeus.
Anya nunca quisera outra vida, nascera para a espada e para fazer valer a lei. Agora, olhando para Marissa, percebia que havia mais da vida do que isso, ela somente ficara fora tempo demais, se negara por tempo demais do prazer de ser simplesmente humana. Era hora de lembrar que sorrir e amar era permitido, mesmo para aquelas que carregam a espada.

9 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 10)

Anya não ficou realmente surpresa. Marissa era mais uma filha da terra do que do castelo. Desde cedo sempre se interessou mais pelas artes, pela colheita e pela administração do castelo do que pela espada. Claro que como toda menina nascida na face da terra seu sonho era se tornar uma guerreira, mas nem para todas isso se tornava uma realidade. Mesmo para as privilegiadas filhas de guerreiras, como Anya, que podiam desde cedo observar como uma guerreira realmente vivia, não havia a certeza de poder pertencer à irmandade.
Marissa era filha de uma guerreira, mas que somente tomara a espada depois da morte do marido. Havia se unido à guilda em busca de vingança e achara sua verdadeira vocação. Marili tivera os mesmos cabelos vermelhos da filha, mas seu gênio, diferente de Marissa, era explosivo e uma vez que seu sangue fervesse era difícil “esfria-la”. Mãe e filha haviam chegado a este mesmo castelo quase mortas, Marissa um roliço bebê de 9 meses, Marili uma jovem de somente 20. Helena, mãe de Anya se encarregou de treinar e controlar Marili e confiou à uma relutante Anya os cuidados da pequena Marissa, mas Anya sempre fugia do que chamava o “saco de cáca”, pois para ela crianças assim pequenas eram um grande empecilho.
Depois da morte de Helena, Anya se dedicou com afinco ao seu treinamento e Marissa era sua sombra, sempre com uma garrafa de água para lhe matar a sede, uma capa para lhe proteger do frio ou somente seus olhos carinhosos para lhe fazer companhia. A menina nunca pedia nada, somente queria estar próxima de Anya e esta permitia e com o tempo Marissa era a única a se aproximar da figura sempre solitária e concentrada que se tornou Anya.
Agora as duas estavam novamente frente a frente e sabiam que a sombra de suas mães pairava sobre elas. Marili sucumbira em uma batalha não muitos anos atrás e quando Anya soubera chorara sinceramente a morte de uma das mulheres mais valentes que conhecera. Ambas haviam lido um dia um poema que começava com as palavras: The art of losing is not hard to master. Que simplesmente quer dizer que todos podemos aprender a perder, talvez não fique mais fácil, nem menos doloroso, mas aprendemos que ainda estamos inteiros depois de cada queda e isso nos fortalece. Anya e Marissa se lembravam deste poema agora, a mais velha com sabedoria e tristeza, a mais nova com esperança de conseguir manter a cabeça erguida a cada nova decepção.

One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

---Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Elizabeth Bishop

8 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 9)

Os primeiros dias do merecido descanso de Anya foram um tanto confusos. Foi preciso procurar substitutas para suas missões e se acostumar novamente com a rotina que era bem diferente da de um acampamento. Como há muito tempo suas temporadas no castelo se resumiam a uma ou duas noites era tratada como uma visitante e, portanto não participava das tarefas obrigatórias às residentes e agora era preciso encaixá-la no quadro de rodízio de tarefas. Provisoriamente Anya ficou na cozinha, onde nunca existiam ajudantes suficientes, até que escolhesse uma posição em aberto que gostaria de ocupar durante sua estadia. Para as guerreiras, quando residentes, nenhum trabalho era imposto, mas era obrigatório que se responsabilizasse por algum trabalho que contribuísse para a vida comum.
Anya descobriu novamente o quanto gostava da vida agitada do castelo. Nunca haviam mãos suficientes para o tanto que havia a ser feito e o ruído de risadas enchiam o ar a todo momento. Garotas de todas as idades seguiam as guerreiras de passagem implorando por historias e velhas senhoras, carregando as cicatrizes das batalhas com orgulho, se sentavam também para ouvir e derramavam lagrimas escondidas relembrando quando ainda podiam manejar a espada. O refeitório era uma algazarra organizada, ninguém nunca faltava a uma refeição pois sempre era possível se encontrar com irmãs que há muito não se via. O refeitório era quase como um centro de controle do castelo pois era o único lugar onde se reuniam todas ao mesmo tempo.
Em seu primeiro dia Anya se viu rodeada de muitas irmãs da época de treinamento e se viu rindo e conversando como há muito não fazia. Em suas visitas rápidas quase nunca descia ao refeitório, pois o cansaço vencia a fome e passava sua estadia em um sono comatoso para ganhar a estrada novamente de alforje cheio e coração vazio. Agora, vendo tantos rostos conhecidos e sentindo o carinho nos abraços e beijos, se arrependia do isolamento em que andara vivendo.
Era hora do almoço e Anya trazia travessas fumegantes da cozinha parando a todo momento para ser abraçada e receber boas vindas. No grande refeitório reinava um clima festivo que era normal para quem estava acostumado, mas incrivelmente excitante para os que não conheciam estas guerreiras intimamente. Aqui elas eram somente mulheres e se comportavam como tal, aproveitando ao maximo o período de calma, trocando receitas, contando novidades e piadas.
“Anya? Anya Mia?”
Anya se voltou para dar de cara com uma jovem quase dez anos mais jovem que ela. Cabelos ruivos, pele sardenta e o sorriso mais luminoso do mundo. Ela se lembrava de um sorriso assim em um bebê reconchudo que aprendera a andar rápido para poder segui-la. Lembrava de como se sentira em ser o objeto de adoração de alguém e de como a criança crescera sempre seguindo seus passos. A jovem a sua frente ainda não tinha cicatrizes, devia ter uns 20 anos e era estranho que nenhuma marca ainda tingisse sua pele.
“Marissa? É Marissa, não?”
“HÁ! Então você se lembra? Sou eu mesma e não posso nem dizer como estou encantada em revê-la. Acho que fazem uns bons anos que não consigo nem mesmo botar meus olhos em você. Às vezes me diziam que você estava no castelo e confesso que espiava em cada quarto só pra ver você mesmo que dormindo, já que era impossível pega-la acordada. Mal abria os olhos e já pulava no seu cavalo e, vrummm, à galope. Puxa!! Mas é bom vê-la de novo! Ainda mais acordada e... puxa, eu falo muito, não é?”
Anya gargalhou com vontade. Era a mesma Marissa. Sempre com mil palavras na boca e o coração tão quente quanto o fogo em seus cabeços
“Oh, Marissa” E Anya a abraçou com carinho. A sensação foi a mesma de quando Marissa era criança. O corpo quente e amável, a sensação de ser adorada mesmo sem merecimento. Era bom e parecia aquecer seu coração cansado.
“Você vai ficar não vai? Não pode continuar de batalha em batalha sem para. Deixa eu cuidar de você, juro que logo perde essas olheiras e põem um pouco de gordura nesses ossos.”
“Vou ficar sim e quero saber tudo que andou acontecendo desde que parou de se agarrar em minhas pernas.”
“Não muito. Eu...”
O rosto de Marissa ficou muito vermelho e seus olhos se encheram de lagrimas.
“Você vai ter vergonha de mim, Anya, não vai querer ser vista ao meu lado. Eu.. Eu fui recusada como guerreira.”

7 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 8)

“Anya!”
“ANYA MIA!”
“MIA!”
Anya acordou de seu devaneio para ver sua madrinha fingindo uma carranca. Sempre que retornava ao seu castelo costumava se perder em recordações. Era o único lugar onde sabia poder descansar seu corpo e mente. Sua minha casa. Era onde repousavam seus sonhos e seus pais.
“Mia, será que alguma vez na vida você vai responder da primeira vez que eu chamar?”
“Acho que nunca, minha querida madrinha.” E abraçou com carinho aquela que era sua ultima ligação com o passado.
“O que te deixou assim tão avoada, Mia.”
“Estava lendo meu diário. Lembra como eu costumava escrever? Tinha ambições de completar um livro com nossas historias.”
“Sempre achei uma ótima idéia. Você sabe que muitos contam nossas historias, mas ou exageram ou nos tiram o mérito. Porque parou?”
“Tia, há quanto tempo não tenho uma folga?” Olhou a tia que só levantou as sobrancelhas com um sorriso irônico. “Não adianta me olhar com essa cara. Não tô reclamando, foi a vida que escolhi, mas não sou a única em nosso castelo, porque sempre eu sou enviada em TODAS as missões?”
Anya, a mais velha, deixou o sorriso morrer e olhou a afilhada com certa tristeza. Depois da morte de seus pais quase nada restara a Anya Mia senão a espada e a lei. Como sua madrinha, Anya Lia tentara suprir as carências afetivas que sabia Mia sentia, mas a menina em poucos anos se transformara em uma moça reservada e distante. Nos dias de hoje Anya Mia era quase uma lenda entre as guerreiras. Todos sabiam que empunhara a espada no dia que sua mãe morrera, aos 11 anos, e nunca mais a soltara. Enquanto outras se tornavam guerreiras ativas aos 20 anos, Anya Mia com 16 já era escolhida como batedora experiente e muitas vezes como isca. Sua mão nunca tremera na hora de aplicar a lei. Parecia ter gelo nas veias e fogo nos olhos e sua presença em batalha era garantia de vitória. Seu corpo era um mapa de cicatrizes, mas milagrosamente nenhum dos seus ferimentos nunca a deixou de cama por mais de dois dias. E agora, finalmente uma mulher feita, com 28 anos de idade e 16 de batalhas, Anya estava cansada e olhava para o passado com saudades e talvez um pouco de ressentimento.
Anya, a mais velha, via tudo isso em seu rosto pálido de olheiras profundas, na postura cansada dos ombros, no massagear constante do braço da espada.
“Mia, você construiu sua fama. Sabe que se for dado a escolher qualquer guerreira quer lutar ao seu lado. Você se tornou uma lenda, querida. Bem sabe que se pedir poderá tirar um ano de férias merecidas, mas você pede? Não, Mia, você nunca pede porque não consegue ficar sem lutar. Do que tem medo?”
“Medo? Não tenho medo, madrinha, mas lutar é somente o que eu sei fazer.”
“Isso não é verdade. Você sabe escrever com sua alma e não a vejo pegar o papel e pena há tempo demais. A ultima vez que me deu seu diário para ler eu imaginei que em pouco tempo em vez de um caderno existiriam vinte, mas você simplesmente desistiu de tentar achar tempo para isso. Você também forja uma espada como ninguém, mas não a vejo em uma forja há dez anos. Sem contar que tece melhor do que muitas tecelãs, mas prefere se contentar com o que te oferecem em vez de parar um pouco e produzir algo maravilhoso que te ponha um sorriso no rosto. O fato é, Mia, que você luta para não pensar. Não sei do que foge ou porque, mas qualquer atividade que dê tempo ao seu cérebro é descartada. E não culpe aos outros por usarem seus dotes com a espada, você nunca disse não e sempre foi permitido às guerreiras escolher quando tem mais de dez anos de luta como você.”
Anya, a nova, escondeu o rosto nas mãos e se perguntou se ainda saberia chorar. Desde que seu pai morrera parecia estar seca de lagrimas e a dor daqueles que acudia eram tão comuns que aprendera a bloquear toda empatia e fazer a única coisa que podia para consolá-los. Ela lutava.
Mas agora... Tão cansada...
“Madrinha, peça para nossas superioras que me dêem permissão para ficar em meu castelo por um tempo. Já não agüento o cheiro de sangue. Preciso me sentir viva novamente.”
“Claro, querida.” Anya, a velha, ainda tinha lagrimas e as derramou discretamente enquanto abraçava sua afilhada.
Para uma guerreira era preciso ferir para fazer o bem, matar para viver e isso cobra um alto preço. A alma fica pesada, o coração insensível e a mente agitada. É preciso que uma guerreira pare constantemente para redescobrir como sentir e talvez, se tiver sorte, a amar.

6 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 7)

A praça parecia pequena para o numero de combatentes. As guerreiras foram aos poucos exterminando cada um daqueles que ousaram não fugir. Meu pai lutava ao lado de minha mãe como um louco e eu, escondida em sua oficina os via com olhos maravilhados. Pareciam deuses banhados pela luz daquele entardecer.
Por um acaso do destino os dois se viram separados do resto das guerreiras e cercados por muitos homens. Eles então deram-se as costas, encostando-se um ao outro em busca de proteção. Vi como trocavam palavras apressadas que me pareceram desesperadas e meu coração se comprimiu como se já soubesse o que eu iria presenciar. Os homens caíram sobre eles e vi minha mãe ser agarrada e jogada ao solo enquanto meu pai lutava para chegar até ela. Ela não foi somente assassinada, em poucos segundos pouco sobrava dela que fosse reconhecível. Meu pai gritava e brandia sua espada, mas era já tarde demais. Meu pobre coração se quebrou e eu agarrei a espada que meu pai fizera com carinho como presente de inverno para minha mãe e me lancei à luta.
Talvez Deus proteja os inocentes ou talvez os insanos tenham uma força vinda do desespero, o fato é que eu lancei a terra cada homem do bando que cruzou meu caminho. Minha espada, a espada de minha mãe, entrava em seus corpos com facilidade e eu sentia uma alegria imensa a cada vez que isso acontecia. Meu pai gritava para que eu retrocedesse, mas não havia volta.
O destino deu suas cartas novamente e desta vez nos sorriu, o jogo virou e logo nos vimos rodeados de guerreiras. A luta terminou. Tudo terminou..
Um grupo de guerreiras saiu no encalço dos que fugiram e voltaram uma semana depois com rostos cansados, corpos doloridos, roupas em farrapos e espadas sujas de sangue. Cada um deles havia sido caçado e nossos mortos haviam sido vingados, mas isso me deu pouca alegria. Enterramos nossos mortos em uma espécie de letargia, era como se já não fossemos nós mesmos, mas sim espectros vagando por lugares conhecidos em uma vida que nunca retornaria. Meu pai murchou ante meus olhos e talvez não tenha enlouquecido completamente pois eu ainda vivia, mas eu tinha que lembra-lo constantemente disso.
Entrei para a guilda na mesma noite que as guerreiras voltaram de sua caçada. Meu pai chorou de tristeza e de orgulho na noite em que realizamos os ritos de minha admissão, mas não protestou, já não havia força nele para isso. Ele me presenteou com a espada que eu manchara de sangue mal saíra da forja e me disse palavras que levei em meu coração pelo resto da vida.
“Honre sua mãe e sua guilda. Não deixe que o sangue que manchou esta espada manche também sua alma. A conserve limpa e afiada e faça o mesmo com sua mente. Leve para sempre a lembrança de que seus pais para onde for, mas nunca se lembre deles em sua hora mais negra. Pense em mim e nas horas que passamos na forja e lembre-se de sua mãe como a luz de nossas vidas. Você já não me pertence, assim como ela nunca me pertenceu, mas eu sempre serei seu até depois de minha morte. Te saúdo, guerreira.”
Lembro de como ele se ajoelhou à minha frente e beijou o punho de minha espada no sinal mais antigo de respeito e submissão às guerreiras.
Ele viveu ainda por muitos anos, já não era o mesmo homem e era difícil colocar um sorriso em seu rosto, mas continuou um ferreiro admirável e até sua morte me presenteou com uma espada a cada ano e a cada visita que eu lhe fazia entre minhas viagens de aprendizado, me dava mimos como adagas, facas, punhais, todos regiamente trabalhados. Era sua maneira de me dizer que se orgulhava de meu caminho. Havia pouco que eu pudesse para retribuir sua eterna dedicação, mas conseguia faze-lo sorrir quando passava tardes com ele forjando o aço e contando das terras que havia atravessado.
Ele se foi em um entardecer de outono, muito parecido com aquele em que minha mãe se foi. O sol morria no horizonte manchando a terra e enquanto segurava minha mão e dava seu ultimo suspiro, chamou por aquela com quem finalmente iria se reunir “Helena!”. Pelo seu sorriso sei que ela o atendeu.

5 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 6)

Minha mãe ainda era uma guerreira e, apesar de passar a maior parte das noites com meu pai, chamava de casa o castelo ao pé da montanha. Victor era o nome de meu pai, e assim me chamaria também se houvesse nascido homem, mas nasci mulher e minha mãe me deu o nome de Anya em homenagem a minha madrinha, chefe da guilda de nosso castelo. Seu nome era Anya Lia e o meu Anya Mia e ela sempre me chamou de Mia até o dia de sua morte. Dizia que apesar da homenagem honra-la era muito estranho estar sempre a berrar o próprio nome, e Deus sabe que ela o berrava com freqüência para me repreender pelas minhas traquinagens infantis.
Sempre morei no castelo, apesar de passar meus dias na aldeia e muito desse tempo vendo meu pai forjar espadas para as guerreiras. Adorava ver seu suor lustroso correr pela face afogueada e do reflexo dourado que a forja lançava por todo lado. Sempre me espantava ver seus músculos saltarem como corda cada vez que levantava o martelo e batia no metal quente e mais me surpreendia ver aquele metal disforme se transformar em uma espada reluzente e letal. Ele era um homem especial. Sua força bruta era temida, mas ele preferia usa-la na forja, porem nunca hesitou em lutar lado a lado com minha mãe se preciso. Sua voz era profunda e rica e suas palavras sempre sábias e sabia fazer com que nossa pequena família parecesse perfeita, mesmo que vivêssemos separados, mesmo com minha mãe sempre saindo à galope sem saber se desta vez voltaria viva.
Eu cresci sabendo que um dia teria que tomar uma decisão e para mim não foi fácil pois a vida na vila era tão boa quanto no castelo. Aprendi a forjar quase tão bem quanto meu pai e sabia tecer como uma profissional, mas também sabia lutar em combate corpo a corpo, manejava uma espada desde os 6 anos e era particularmente boa no arco e flecha. Com 12 anos devia escolher se seria uma guerreira e adentraria a irmandade como membro ativo ou se seria simplesmente uma mulher. Talvez eu tivesse optado em ser uma mulher comum não fosse nossa aldeia se tornar alvo da cobiça de homens sem lei.
Me pergunto até hoje por quanto tempo nos observaram, por quanto tempo sonharam em pôr as mãos nojentas em nossas colheitas, quanto tempo nutriram o desejo pelos corpos das mulheres que os desprezavam.
Eles eram numerosos, coisa pouco comum em nossos tempos, pois os bandos costumavam ser formados por poucos homens. Não eram muitos os que tinham coragem de desafiar a lei sabendo que o castigo era a morte. A vigilância constante das guerreiras também tornava difícil que grupos maiores se reunissem, mas de alguma maneira este bando, talvez se aproveitando da vastidão da cordilheira, passara despercebido.
Era o mês de maio e já nos preparávamos para o inverno que estava às nossas portas. O castelo estava cheio de guerreiras finalmente aproveitando um merecido repouso e a vila tinha seus silos e despensas cheios. Os fazendeiros guardavam seus arados e se preparavam para alguns meses de jogos e cantorias e as crianças aproveitavam os últimos dias em que poderiam rolar no solo antes que as guerras de bolas de neve começassem. Tudo parecia perfeito.
Não houve aviso. Estávamos por demais acostumados à paz que o extremo sul do continente nos permitia para manter vigias nos postos. Fomos pegos de calças curtas, como dizem, em um entardecer que parecia à principio perfeito.
O sol morrendo no horizonte nos roubou a visão daqueles que se aproximavam e só os notamos quando já derramavam sangue inocente em nossas portas. O sino de alarme tocou tarde demais. Quando as guerreiras saíram do castelo a vila estava em fogo, os silos e as despensas saqueados e corpos cobriam as ruas antes limpas. Elas eram muitas, mas eles eram simplesmente selvagens. Pareciam saídos de um pesadelo e macularam tudo em que tocaram. Arrancaram o coração dos homens, estupraram mulheres e crianças e os animais que não podiam ser capturados foram mortos com requintes de crueldade.
Foi a ultima vez que olhei para o mundo com olhos inocentes. Foi nesse dia que me tornei a guerreira que serei para sempre.

2 de fev. de 2008

Depois da Escuridão (Parte 5)

Minha mãe não era residente do castelo onde nasci. Seu nome era Helena e estava viajando pelo mundo, como fazem todas guerreira pelo menos uma vez na vida, para aprender o que houvesse para ser ensinado, para ver o que houvesse para ser visto e para contar o que existisse para ser compartilhado. Ela veio do que se conheceu como Europa e lembro ainda de sua voz suave e seu sotaque sedutor. Era uma bela mulher. Seus cabelos eram castanhos, longos e de reflexos acobreados e combinavam perfeitamente com sua pele clara e seus olhos verdes. Seu corpo era como de toda guerreira, musculoso e forte, moldado pelo esforço da cavalgada e pelo exercício com a espada. Tinha a face direita cortada por uma cicatriz, uma linha clara e fina que lhe emprestava um ar misterioso e contemplar seu corpo nu era o mesmo que ler a historia de suas batalhas. Era uma beleza selvagem e talvez eu esteja romantizando demais a mulher que me deu a vida, mas não fui eu a única cativa de seu encanto.
Helena chegou ao sul da América do sul no outono, quando a nove ainda era somente uma promessa. Ela já viajara por todo o mundo e seu coração já ansiava por retornar ao seu lugar de origem. Mesmo na vida que levamos, sempre nas costas de um cavalo, aprendemos a voltar para nosso “lar” o maior numero de vezes possível, mesmo que por uma ou duas noites, para não perdemos a pouca identidade que temos. Helena já não via as paredes de seu castelo de origem há pelo menos três anos e sentia falta dos encontros com suas companheiras, a única família que existia para uma guerreira, das noites em volta da lareira contando historias das estradas por onde andavam e dos casos que resolviam. Há três anos era uma querida visitante, uma amada irmã, uma bem vinda guerreira, mas sempre a estranha que logo seguiria seu caminho. Aprendera muito, fizera algumas amizades, que se o tempo permitisse gostaria de conservar, ganhara mais algumas cicatrizes em batalhas e agora chegava quase no extremo do mundo, seu ultimo destino e então poderia retornar.
O castelo era um dos mais belos que Helena já vira. Estava aninhado aos pés da cordilheira que corta o continente e que por si só é um espetáculo a ser registrado. A vila, aos pés do castelo, era prospera e o povo um dos mais alegres que já vira em suas andanças. Chegou em um entardecer cortado por um vento gelado e foi recebida na aldeia como a uma princesa. Antes de ser conduzida ao castelo por aldeões risonhos e cordiais, foi convidada a se sentar ao redor de uma fogueira e bebeu vinho doce e comeu a carne mais macia que já havia provado. Todos queriam lhe apertar a mão e diziam “obrigada”, sem que ela soubesse o porque. Estava acostumada a ser tratado com toda consideração, afinal era uma das que mantinha a lei viva, mas nunca se sentira tão especial como neste canto afastado do mundo. No castelo não foi muito diferente, suas irmãs da guilda a abraçaram com carinho e lhe prometeram uma estadia relaxante e proveitosa. Naquela noite Helena dormiu como uma criança, com um abandono vindo da certeza de estar segura.
Foi um período mágico. Pela primeira vez ela se sentia mais como mulher do que como guerreira. Ajudou a tecer o algodão, a preparar o vinho, a estocar alimentos para o logo inverno e aprendeu a forjar uma espada e a derreter seu coração.
Toda guerreira sabe que o amor é algo que não cabe em nossas vidas, não se desejamos continuar a ser guerreiras, somos ensinadas a nos proteger, a nos contentar com amantes que não desejem amarras, ao prazer rápido e indolor das relações de ocasião. Mas nem sempre temos coragem de abandonar o sonho secreto de qualquer coração, que é pertencer a alguém que nos ame apesar de tudo e de todos, quando ele nos bate à porta.
Helena bem que tentou, mas o homem que forjava as mais belas espadas também tinha o mais belo coração e ela se entregou a ele da maneira mais completa. Nunca mais voltou ao seu castelo, nunca mais se afastou mais do que alguns dias de seu amado e nunca se arrependeu. Eu nasci dois anos depois do dia de sua chegada.