22 de fev. de 2007

Relatório de Carnaval e previsão para os próximos dias:

Rinite muito ruim. Olhos não funcionam. Tosse irritante. Dores no corpo. Estômago revoltado. Visitas e posts adiados. Volto logo. Guardem minha cadeira.

18 de fev. de 2007

Tempestade

O dia não poderia ser mais ensolarado. Na verdade escaldante era a palavra que lhe vinha à mente. Apesar do sapato baixo, da roupa leve e dos cabelos presos, ela sentia-se derreter. Pensara que um passeio pela cidade quase deserta lhe faria bem, mas na verdade já estava mal humorada e não podia pensar, sem estremecer, em todo caminho de volta. A vontade de chorar era grande. Os prazeres simples eram obrigatórios, já que não tinha carro e nem dinheiro para as coisas que realmente gostaria de fazer, mas a cada vez que se obrigava à eles só que havia no final do arco-íris era frustração. Seus pés doíam, suas roupas pesavam, seus olhos turvavam e a cidade começava a parecer mais abandonada do que vazia. Sentou em um banco no ponto de ônibus mais próximo e ficou observando as nuvens de tempestade se aproximando. Ótimo. Poderia acrescentar “molhada” a todos seus outros desconfortos. Um senhor se aproximou com um carrinho de sorvete e a olhou sorrindo. Ele também parecia cansado. “ Dois sorvetes pelo preço de um?” Ela o olhou e, dando de ombros, aceitou. “Não tenha pressa, eu espero até você terminar o primeiro.” Ela escolheu um de limão, para refrescar, e não estava nem na metade dele quando as primeiras gotas começaram a cair. Ficaram, ela e o vendedor de sorvetes, observando a tempestade ganhar força. O vento parecia se animar, conforme o volume de água crescia, e girava e cortava tornando o abrigo do ponto de ônibus uma piada. Nem ela nem o velho se mexeram. Deixaram a chuva os atingir de onde viesse. O sorvete de limão terminou e dessa vez um de chocolate foi a escolha. Ele também se serviu de um e se sentou ao seu lado. Molhados eles viam os raios cortando o céu e os trovões estremecendo os edifícios da avenida. Era quase surreal. Tudo parou de fazer sentido e tudo ganhou um novo significado. Ela respirou fundo deixando toda tensão ser lavada pela água fria e furiosa. O velho somente a observava com um sorriso. O sorvete de chocolate chegou também ao fim e ela se ergueu e caminhou pela chuva sem pensar na distancia a percorrer, sem pensar no desconforto ou o perigo escondido nas poças que mais pareciam lagos. Ela simplesmente voltou para casa que a esperava fresca e nova sob a chuva de verão.

15 de fev. de 2007

Suspicion

Quando ele abriu a porta e o gemido o alcançou pensou que iria morrer. Eles já haviam passado por muitas, mas superado todas. Houveram algumas tentações, mas ambos sempre souberam avaliar muito bem o que tinham e se afastaram sem remorsos da aventura passageira. Haviam chegado a um ponto na vida onde podiam simplesmente aproveitar, podia não haver mais paixão, mas havia respeito e amor. Não tinham filhos, uma opção da qual nunca se arrependeram. Viajavam quase todos finais de semana. Corriam o mundo nas férias. Investiam seu dinheiro sabiamente e unidos se fortaleciam cada vez mais. E agora isso. Um gemido mais alto seguido de um soluço o arrancou do transe em que estava. A imaginou em sua nudez madura e curvilínea, suada e entregue aos braços de um estranho que não saberia o quanto ela poderia ser maravilhosa em dias simples. Esse estranho não saberia que ela ria de olhos fechados, nem que gostava de usar meias para dormir, mas não calcinha. Ele não saberia nada alem da sensação maravilhosa do sexo com uma mulher experiente e fogosa. Novo gemido fez andar. A porta do quarto estava aberta no fim do longo corredor. Podia ver os lençóis desarrumados e o edredom jogado na poltrona onde ela gostava de se enroscar para ler. Não adiantava adiar o fim depois que ele havia começado. Entrou no quarto como um demônio, pronto para destruir e vociferar, mas o que viu o encheu de espanto, alivio e remorso.
- Amor! Me ajuda! Que bom você chegou. Não consegui ir até o telefone.
Ela estava caída ao lado da cama. O tornozelo estava claramente quebrado e a cada pequeno movimento ela gemia de dor. Voltaram do hospital como um casal em lua de mel. Ele a carregou no colo e pediu comida de seu restaurante preferido. Assistiram TV até tarde já que ele decidira não trabalhar no dia seguinte. Ele a seduziu aquela noite. Ela estava surpresa com este fogo inesperado, mas correspondia com paixão. Ele nunca lhe disse. Não poderia dizer que redescobrira a paixão quando pensara tê-la perdido.

14 de fev. de 2007

Manual do Inútil - Como fazer...

Macarrão. Você está com fome e francamente pedir comida no fim do mês não está dando. A carteira está vazia e os tickets da empresa já acabaram faz dias. Então vamos lá. Um macarrão com um molho pronto não é nada difícil. Pegue uma panela grande, não, não essa. Maior. Assim, essa serve. Encha de água e acrescente um pouco de óleo e uma colher de sal. LARGA ESSE ÓLEO, MALUCO!!!! É UM FIO DE ÓLEO e não a lata toda. Jogue essa água fora, é capaz de fritar em vez de ferver, encha de novo. Sal. Óleo, UM FIO. Assim. Agora deixa ferver. Abre uma cerveja e vai ler uma playboy. ACORDA!! Não está ouvindo a água borbulhando? Agora coloca o macarrão, não o pacote todo , senão vai virar um porquinho. Ponha metade, já é até muito. Agora deixe por uns dez minutos. Enquanto isso pegue uma panela pequena e abra aquele vidro de molho pronto que a ultima namorada deixou ai. E eu tenho culpa que é com azeitonas?? Se você não gosta porque ela comprou? Vai esse mesmo e não reclama. Ponha o quanto você quiser numa panela e esquenta. Dá uma experimentada para ver se tá a seu gosto. Mas já disse que não tenho culpa que é de azeitona, deixa assim e finge que é de coração de alcachofras ou vai comer na sua mãe. Pegue um garfo e experimente se o macarrão está bom . tem que estar macio sem estar molengo. Pega isso logo, menino! Mas tá tão difícil assim?? Uma concha?? Ei! que você vai fazer com isso? Aii Jisuisssss. Tá, deixa pra lá. Pega um escorredor para escorrer o macarrão. Como não tem? É aquela bacia cheia de furinhos. Raquete? De Tênis? Tá, vai fazer o que, usa a raquete mesmo. Escorre o macarrão na raquete e depois põem na panela com o molho e mistura. Ou ponha no prato e jogue o molho por cima. MAS EU NÃO TENHO CULPA QUE A IDIOTA DA SUA EX NAMORADA COMPROU MOLHO DE AZEITONA, COME ISSO E PARA DE ENCHER.! Agora pegue seu pratinho e sente onde te apetecer e coma seu macarrão. E não esqueça de lavar a louça depois. Não, eu não vou lavar não. Ahh. você gosta de azeitona ? Era alcaparras que não gostava? É sim, bem fácil de confundir....... humpfffff

13 de fev. de 2007

Walking Home

Com a mão em concha ele segurava a pequena caixa sem tampa. Mas era uma mão muito pequena. A caixinha, com o carro amarelo dentro, balançava precariamente em sua palma e os dedos não ajudavam em nada, já que mal conseguiam se fechar. Seus olhos carregavam toda preocupação com seu tesouro, mas os olhos de seu pai eram impacientes. O homem não poderia estar mais desinteressado nos sentimentos da criança. O puxava pela mão livre fazendo com que o menino meio corresse, meio andasse enquanto a caixinha pulava como um sapo com soluços.

Ela era grandalhona, vestida para um dia na escola, cara redonda e macia como uma rosa cheia e molhada de orvalho. Fresca. Jovem. Bela. Aparentava ter 15 anos e provavelmente era essa mesma sua idade. Suas amigas, chamemos assim pois estavam na mesma roda, deviam ter a mesma idade, mas aparentavam de 20 a 30 anos, dependendo do ângulo que se olhasse. As roupas de todas eram variações do guarda roupa básico de uma prostituta bêbada e pouco era deixado para a imaginação. Nossa garota, a rosa, fez uma observação esperta sobre um assunto qualquer. Suas amiga não riram. Ela não fazia parte. Ela não era como elas. Ela falava coisas que não entendiam. Pena que a rosa não viu o garoto bonitinho que sorriu e a olhou com olhos mais que amigos. Adivinho que não pela primeira vez.

Ele olhava para cima encostado no muro do terreno vazio. O celular colado à orelha, os olhos súplices, a voz tremula e incrédula. Olhava para o edifício do outro lado da rua sem entender porque a sombra à janela se recusava a descer para vê-lo. O pôr do sol não esperaria pelo fim do ato. Já é quase noite e logo ele será uma sombra contra um muro qualquer, em uma rua qualquer. Esperando.

O cão esperava pacientemente que o homem se aproximasse. Era como a dança muito simples e repetitiva. O homem soltava a guia retrátil, deixando que o cão se afastasse. O cão, vendo os velhos pés lentos e incertos, parava e esperava até a guia se retrair inteiramente para então se afastar outra vez. O cão leva seu dono sempre em segurança de volta para casa. Aposto como isso acontece todos os dias.

Somente mais um dia voltando para casa.

12 de fev. de 2007

Liberdade

A estrada era uma longa linha pontilhada sob os faróis e eu somente uma extensão da maquina em que viajava. Era sempre assim. A madrugada se entrega ao viajante se este se render a ela e eu nunca fui de me fazer de difícil. Os quilômetros pareciam desaparecer debaixo de mim como por mágica e nunca pensei para onde estava indo ou quando iria chegar enquanto o motor roncava. A noite, sem as luzes da cidade, era recheada de estrelas que pareciam felizes por estar lá penduradas para meu deleite. Lembro de sentir inveja de seu brilho distante e despreocupado, mas esse sentimento mesquinho nunca durava já que brilhavam somente para mim. A estrada estava, como sempre, deserta na madrugava, nem me incomodava em contar um ou outro veiculo pesado que ultrapassasse ou que passasse por mim, eram como fantasmas de um passado, ou futuro, distante e incoerente. Lembro da sensação de plenitude e potencia que sentia. A maquina domada por mãos e pés sem força ou pretensão de violência. O mundo dormindo enquanto eu passava. A liberdade. Fui uma viajante por vezes sem conta e, mesmo percorrendo o mesmo caminho, nunca deixei de me maravilhar com a beleza da noite. Era dona de meus impulsos e costumava parar no acostamento de estradas sinuosas, motor ronronando, luzes desligadas, esperando pelo momento em que a adrenalina tornaria meus sentidos mais eficazes. O ar da noite ganhava mais perfume, os sons pareciam amplificados, as sombras mais assustadoras e o silencio rugia como uma fera pronta a atacar. Eu me obrigava a esperar até ser insuportável e então saia em velocidade, acendendo as luzes e deixando o desconhecido para trás. É disso que sinto falta, da escolha entre o ir e o ficar. Da liberdade de poder ir e voltar.

11 de fev. de 2007

Ethan Porquinho

Ethan Porquinho era um agente secreto. Não muito popular, mas se chegara até ali é porque tinha seus méritos. Agora, pela primeira vez, tinha a chance de provar que seus métodos eram muito mais eficientes do que os tão comumente usados. A agencia seguia há meses um grande gênio do crime que estava pronto a vender para uma potencia inimiga uma arma incrivelmente perigosa, pelo menos achavam que era uma arma. Até hoje, 6 meses, 10 dias e 3 horas depois de saber de sua existência, ninguém sabia exatamente o que “joelho de porco” queria dizer. Poderia ser um vírus potente, quem sabe papeis comprometedores sobre os grandes governantes do mundo, talvez até mesmo um novo tipo de míssil. O fato é que “joelho de porco” seria vendido para um pequeno mas belicoso país do oriente médio e a agencia impediria, nem que fosse uma simples receita de feijoada. Todos os agentes haviam falhado até agora. Faltava-lhes técnica e sutileza para se comunicaram próximos de um alvo tão experiente, afinal, será que não é dar muita bandeira ficar conversando com a manga de sua camisa? Ethan Porquinho havia desenvolvido técnicas próprias, apesar de não apreciadas, para se comunicar e disfarçar as tarefas simples, mas peculiares, de um agente secreto. Sendo sua primeira operação solo, teria que ficar em contato constante com seus superiores, mas isso não o incomodava, ele se sentia confiante. Na manhã seguinte ele estava à postos, no café onde seu alvo costumava fazer fechar seus grandes negócios. Ocupou a mesa ao lado do grande gênio do crime e para desespero de seus superiores chegou até mesmo a lhe dar bom dia. Seu corpo simiesco, braços compridos demais e pernas curtas num corpo robusto, arrancavam riso, mas não suspeita. Com os ouvidos atentos na conversa da mesa ao lado ordenou seu café. Seus olhos vesgos impediam que os criminosos soubessem com certeza para onde olhava, mas logo levantou suspeitas e nesta hora ele entrou em ação. Com um arroto alto chamou o garçom e ordenou mais café e miúdos fritos e sem cerimônia enfiou o dedo no nariz, o que fez todos desviaram os olhos, momento em que ele aproveitou para passar as coordenadas que acabara de ouvir. Ethan Porquinho reportava cada frase que ouvia e os criminosos, em vez de suspeitarem dele, trocavam mais e mais informações, com urgência, talvez culpa de suas táticas. A cada olhar que recebia Ethan Porquinho enfiava o dedo no nariz, girava o dedo no ouvido, palitava os dentes de boca aberta e cheia de comida, soltava gazes com ar de menino feliz, arrotava satisfeito e enquanto isso reportava cada palavra. A operação foi um sucesso. A agencia, graças a Porquinho, pode chegar no ponto de troca antes dos criminosos e todos foram presos e “joelho de porco” foi posto em segurança. Porquinho recebeu muitos cumprimentos ao chegar na agencia, mas o animo geral apagou sua glória. Caras verdes e cestos com restos de café da manhã indicavam à tortura geral que fora esta missão. Porquinho foi reconhecido, claro que sim, não era todo dia que se conseguia tirar um “joelho de porco” das mãos do inimigo, fosse esse treco o que fosse, mas era impossível montar uma equipe para ele. Assim, Ethan Porquinho salvou o mundo, mas foi encostado numa mesa no subsolo da agencia onde ficava à espera de que o mundo precisasse ser salvo novamente. Afinal, quando o mundo está em perigo ninguém se importa se ele é salvo por arrotos, flatulência e meleca de nariz. Mas somente se ele estiver a ponto de explodir.

10 de fev. de 2007

Egyptian Eyes

Para onde olhasse o mundo era de areia e apesar de todo desconforto ela nunca fora tão feliz. Seu sonho se tornara realidade. Nem em um milhão de anos poderia sonhar que participaria de uma escavação no Egito, nem mesmo imaginava que ainda havia o que escavar, mas o dinheiro, recém herdado, comprara muito mais que conforto, comprara sonhos. A tumba principal, tão procurada, ainda não fora achada, mas só respirar de respirar o ar que corria sobre esta terra era excitação suficiente. Com a quantidade de dinheiro que doara para a escavação fazia o que bem entendia. Ajudava com o trabalho ou simplesmente andava pelo sitio arqueológico pensando no passado. Hoje decidira escrever suas cartas no sossego da parte ainda inexplorada do sitio. Era um lugar quase mágico e se fosse ela a responsável, teria começado ali a procura pela grande tumba. Encostada em uma parede semidestruída, esquecida das cartas, pensava se era a primeira a se sentar naquele ponto depois de séculos. Alguém já teria posto as mãos onde as suas estavam depois daquelas que construíram aquele lugar? Sentiu o chão tremer e depois ceder, não teve medo, pois houve tempo. Num minuto estava sob o sol já ardente, respirando o ar com cheiro de especiarias e no outro estava deitada num monte de areia e olhando para a escuridão dos séculos. A terra a engolira e se fechara, como mágica acima de sua cabeça. Passou a mão pelo corpo e não sentiu dor, só uma ânsia mais pelo medo do que pela queda abrupta. Acendeu seu isqueiro e olhou ao redor. Tudo que a luz tocava reluzia. A tinta das pinturas na parede, os objetos espalhados pelo enorme recinto e por fim reluzia todo o sarcófago no centro da sala. Com dor no coração despedaçou o que parecia uma banqueta e fez uma fogueira. Seu coração batia alto demais e ela teve que se forçar a fechar os olhos e respirar fundo por vários minutos antes continuar. Lembrou da maquina digital da qual nunca se separara desde que chegara e a tirou do bolso, milagrosamente intacta. Fotografou cada parede, cada centímetro em detalhes e por fim se aproximou da ultima morada daquela grande mulher. O rosto esculpido não era belo pelos padrões atuais, mas carregava mais caráter e sabedoria do que qualquer rosto conhecido. Aqueles olhos, em pedras preciosas azuis, pediam silencio. Pediam mais do que isso, pediam compreensão, ela compreendeu. Ouviu pela primeira vez o som da escavação não muito distante. Andou pelo enorme salão novamente, desta vez certa de ser a primeira a tocar cada objeto depois de séculos, fotografou uma segunda vez cada centímetro e por fim olhou dentro dos olhos azuis pela ultima vez. Sabia que o ser real, os restos da pessoa magnífica, estavam guardados ciumentamente dentro de pelo menos mais um sarcófago alem deste, mas sentia que ela a olhava e não a podia decepcionar. Sabia o que fazer. Despediu-se comovida do passado e andou por corredores claustrofóbicos em direção à atividade. Sabia por onde ir e o que fazer. Passou por uma porta secreta e logo estava no meio de escavadores que nem se deram conta que ela surgira do nada. Passou alguns dias em silencio, temendo perder a lembrança, mas era poderosa demais para desaparecer. Retirou seu apoio à escavação. Sabia que ninguém mais o faria, já haviam múmias demais em museus demais, e voltou para sua casa. O mundo nunca saberia das maravilhas que vira, mas certas maravilhas não querem ser encontradas, elas pertencem somente ao passado.

9 de fev. de 2007

Manga Balboa

Manga não sabia de onde sua família viera, mas sabia que seu sotaque não era paulista, apesar de nascido em São Paulo, sabia que desde seu bisavô todos homens da família eram pedreiros, sabia que viviam como retirantes nordestinos apesar de estar há décadas instalados no vasto subúrbio de São Paulo, sabia que tinha poucas chances, e menos ambição ainda, de mudar de vida. Todos o chamavam de Manga desde que era menino, apesar de que no principio era por Manga Chupada que o chamavam. Nascera com uma incrível e incorrigível carapaça de cabelos escorridos e perpetuamente sujos, não importando quanto os lavasse, e a cor de cobre sujo e gasto não ajudava em nada. Manga aceitava seus defeitos, mas isso não impedia que sonhasse e foi sonhando que acabou mudando sua vida. De tanto assistir reprises de Rocky na TV, Manga decidiu que se seu cabelo não o ajudava pelo menos podia se exercitar e foi assim que começou com o boxe. Manga era bom. É verdade que seu cabelo distraia muito seus oponentes, mas tinha bom jogo de pés e uma esquerda poderosa. Construindo e treinando, essa era a vida de Manga até ser “descoberto”. Começou a lutar à sério e o dinheiro foi entrando como por milagre. Manga encorpou, comprou uma casinha decente em um bairro simpático, arrumou amigos que o chamavam pelo apelido sem o tom de chacota e até mesmo beijou algumas bocas mais de uma vez. Geralmente as mulheres fugiam depois de fazer contato com o cabelo diabólico, mas agora haviam incentivos e sempre haveriam mulheres dispostas a encarar qualquer coisa por um determinado preço. Manga cresceu, aprendeu a sorri mostrando os dentes novos que não combinavam com o cabelo velho, e enfrentou desafios cada vez maiores. Finalmente, como em um filme de baixo orçamento e roteiro previsível, Manga iria disputar o título de sua categoria. Não vou fazer mistério ou contar detalhes que nada importam, ninguém quer saber da gloria pré disputa, mas sim do desfecho final. Não há como ser delicada, Manga tomou o maior cacete. Ficou um mês no hospital e deixou quase todo o dinheiro ganho por lá. O que? Você acredita em finais felizes? OK. Manga voltou para a casinha no subúrbio, demorou um pouco para parar de sonhar, mas logo estava novamente entre tijolos e cimento e fez o melhor que podia com o pouco que tinha. Manga se transformou em um ótimo pedreiro.

8 de fev. de 2007

O que você esconde?

Todos escondemos algo. Seja magoa, dor, medo, ódio, desprezo, amor ou simplesmente tédio. Evitamos confrontos com esses segredos, mas nosso corpo e mente pagam o preço. Em família deixamos de dizer verdades, não acusamos a traição cometida, não reclamamos do pouco amor ou do excesso de cobranças, esperamos sempre que tudo passe, que a vida apague, aos poucos, essas marcas que vão ficando em nossa carne como tatuagem (Elis não cantava algo assim?). Amamos e guerreamos diariamente sobre temas irritantes, mas sem solução (“a maldita tampa da privada”, “quantas horas para se arrumar?”, “toalha molhada e cama não combinam”, discutir a relação na hora do jogo?”) e nos esquecemos de detalhes diminutos e que parecem estúpidos, mas que são como a bolha assassina, aumentam de forma assustadora com o passar do tempo. Perdoamos, é claro, mas esquecemos? Todos escondemos algo e talvez nunca consigamos arrastar esse segredo pelas pernas e expô-lo à luz do sol, onde explodiria como os vampiros modernos. Eu admito que tenho alguns segredos e entre magoa, dor, medo desprezo, amor, arrependimento e tédio, eu às vezes me sinto como um membro de gangue chinesa, tatuada da cabeça aos pés. Será tarde demais para conseguir esquece-los? E você? O que você esconde? Onde fica sua tatuagem?

7 de fev. de 2007

Companheiro na Pelota Idiota


Ele fica ali parado. Às vezes grita seu bordão antigo “BEM-TE-VI, BEM-TE-VI” grita tão alto que me leva à janela. São 7:15 de um final de dia ardente. O asfalto parece soltar um bafo vindo do inferno e qualquer lugar sem ar-condicionado ou ventilador é simplesmente inabitável. Já estou em meu quarto. Computador ligado, ventilador a toda, TV na reprise de CSI, cães satisfeitos e deitados aos pés. É o final de mais um dia, mais um e nada a declarar. Espero sempre reencontrar a graça da vida nesse meu santuário, mas é sempre difícil deixar o mundo para trás. Essa pelota gigante, o mundo, parece a cada dia mais idiota e é sempre difícil manter o bom humor e a esperança de que um dia a estupidez seja erradicada do mundo. Sempre penso numa bomba de bom senso que explodira na estratosfera e deixara o mundo bem mais vazio. Mas então ele me chama novamente e eu esqueço da pelota idiota, da bomba de bom senso e do calor infernal. A chuva cai mansa e ele reclama. Me dá as costas como se não se importasse, mas vira sua cabeça perfeita para ver se me cativou. A chuva aperta e ele voa, mas logo volta, como para me dizer “Hei, não posso conversar agora, mas nos vemos amanhã.” Grita boa noite, tão alto que os cães levantam as orelhas, e abre às asas rumo ao seu abrigo noturno. O mundo parece menos idiota depois que ele se vai.

6 de fev. de 2007

Anônimos

Seus ternos eram bem cortados, de marcas famosas, estilosos, precisos. As camisas clássicas e pontuadas por gravadas que custavam mais que guarda-roupas completos. Sapatos pretos, impessoais e silenciosos. Eles, mesmo assim, não eram notados. Estavam dentro dos padrões, eram executivos bem sucedidos e anônimos em seu sucesso. Eram recebidos com sorrisos por recepcionistas e secretarias que, instintivamente, arrumavam o cabelo e aumentavam o decote ao mesmo tempo. Seus rostos, bronzeados eram emoldurados por cortes quase militares e óculos negros cobriam seus olhos escondendo segredos, transformando faces em mascaras. Eram somente mais alguns na massa que cobre as avenidas todos os dias. Bonecos corporativos plastificados com uma linguagem cifrada para cada especialização. Anônimos. Durante os dias mantinham empregos glamurosos onde salários eram obscenos demais para ser mencionados. Saiam às ruas no final do expediente e se reuniam em cafés onde trocavam sinais por trás das lentes negras de seus óculos. Logo ganhavam a rua, se misturavam à multidão ocupada em chegar à próxima parada do dia, entravam despercebidos em grandes joalherias onde outros, tão anônimos quanto eles, procuravam um suborno adequado à amante da temporada e onde amantes da temporada procuravam a próxima sugestão para depois do sexo. Eles eram cinco, mas carregavam 2 armas cada e em 3 minutos saiam com os bolsos carregados de jóias e adrenalina. Nunca corriam. Que descrição dariam suas vitimas se eram como copias escarradas de mil outros que andavam pelas ruas? Completamente anônimos. Corporativamente anônimos.

5 de fev. de 2007

Desejo

Eu sei que tenho um problema, mas também sei que não estou só e que são muitos os que como eu não conseguem resistir quando o desejo bate. Alguns chamam de vicio, outros de doença, mas quem realmente sabe o que nos faz estender às mãos para algo que não nos faz bem? Eu tento resistir. Pelo menos penso que sim. Passo às vezes dias sem pensar, já chegaram a ser meses, mas algo sempre acontece que me lembra do desejo escondido no meu peito. É triste não conseguir conter a ânsia, é vergonhoso não ter força de vontade para resistir, mas sou humana e fraca. Andando na rua vejo alguém feliz em ter o que me nego ou sentada, no que deveria ser a paz do meu quarto, assistindo a algum seriado ou filme, sinto aquela fisgada conhecida e sei que não tenho como resistir. Não consigo fingir mais e o que é pior, não consigo resistir mais. Levanto devagar e vou até meu esconderijo, onde guardo o que é só para o meu prazer. Pego o pacote com mãos tremulas e sorriso de antecipação. Não. É inútil resistir. O barulho da embalagem metálica se rasgando me leva às alturas, mas é morder a primeira batatinha Ruffles que realmente me faz delirar.

2 de fev. de 2007

Message in a Bottle

Ele sempre treinava antes. Desenhava as letras com cuidado formando palavras doces e sentenças melancolicamente belas. Fazia isso todos os fins de semana. Sentava em sua varanda, na casa à beira mar, e escrevia cartas de amor, saudade e arrependimento. Num canto da varanda, engradados de garrafas esperavam pelas missivas preciosas que seriam seladas em seus interiores. A ultima parte de seu ritual era a que mais gostava. Saia de sua casa e, por um caminho íngreme, subia no alto de um penhasco próximo de onde podia ver o mar em toda sua beleza. Dali era comum ver o pôr do sol ou simplesmente contemplar as estrelas ao anoitecer ou ver como a lua criava estradas de prata no mar. Dali também lançava as garrafas ao mar. Sempre esperando pela maré certa que levaria a carta para um lugar distante, para mãos ansiosas, em um futuro incerto. Para muitos pode parecer um passatempo inútil e fútil, mas ele fora salvo por uma mensagem selada em uma garrafa que chegara aos seus pés quando resolvera entregar seu corpo ao mar. A carta borrada, de água e lagrimas, era um longo pedido de perdão. Uma canção de arrependimento, uma confissão de fraqueza que fazia qualquer pecado ser somente humano demais. Ele perdoou como se a remetente fosse aquela que lhe destruíra a vida. Descobriu, lentamente, que às vezes somente precisamos ouvir alguém confessar seu erro, ou professar seu amor, para seguir adiante. Que importa, para o coração desesperado, de que outro coração partiu a confissão? E assim ele escrevia cartas que seriam lidas nas horas mais solitárias. Porque mensagens lançadas ao mar sempre encontram os corações sofridos e sempre aplacam a dor dos que choram sem esperanças.

1 de fev. de 2007

It Takes Two to Tango

A musica envolvente os joga violentamente pela pista encerada do salão. É quase uma luta. Um balé selvagem e animal que fala de dor, desespero, ódio e violência. É preciso dois para o tango, mas um sempre se esquivará enquanto o outro resistira até a ultima nota, se agarrando em membros relutantes, sufocando gemidos, enlaçando sedutoramente, se arrastando aos pés que caminham sempre para longe. O espectador sente no sangue o calor dos sentimentos e nos nervos o ardor da musica. Pode-se quase tocar a loucura da paixão. A provocação de um, o abandono de outro. A cumplicidade que torna o relacionamento uma teia apertada e sem saída. Pode-se ver que ambos estão tão envolvidos que cada passo é imediatamente seguido de outro, nenhum deles quer terminar a dança, nenhum deles quer quebrar o circulo vicioso que parece querer se repetir para todo o sempre. Ninguém é inocente, os dois são culpados. É preciso dois para o tango e eles sempre vão estar prontos quando a primeira nota tocar.